Por Eduardo Geraque e Fabrício Lobel
O Brasil poderá ter um mercado oficial de compra e venda de água para tempos de estiagem e de crise de abastecimento. A proposta, da ANA (Agência Nacional de Águas), é implementar o mecanismo até 2017.
Com ele, seria possível pagar para retirar água de rios e represas além do limite máximo autorizado. A ideia é liberar negociações por períodos limitados, durante crises.
Hoje, se esse sistema estivesse em vigor, a Sabesp, que pena para abastecer a Grande SP, poderia pagar para retirar mais água do que o permitido pelo órgão estadual regulador, o Daee.
São esses órgãos que determinam quem pode captar água de um rio e quanto.
Pela proposta em elaboração na ANA, o interessado em comprar pagaria apenas pelo volume extra adquirido.
Essa transação só seria feita se um agricultor, indústria ou empresa de saneamento achasse alguém disposto a abrir mão do direito de captar água durante uma crise.
Com isso, o volume geral já autorizado não aumentaria –mas poderia diminuir, pois, em situações de colapso, todas as concessões podem ser cassadas.
No exemplo hipotético, a Sabesp poderia comprar o direito de captar mais água de um produtor rural. Para isso, esse trabalhador teria que aceitar diminuir a sua captação em troca do dinheiro.
Outra hipótese seria no caso de uma mineradora que tivesse que parar as máquinas por falta de água. A empresa poderia pagar a agricultores vizinhos para que reduzissem sua captação. Assim, todos continuariam produzindo, ainda que em menor escala.
O instrumento econômico em análise vai ser colocado em debate pela agência, que ainda estuda qual é o mecanismo jurídico mais adequado para implementá-lo.
Especialistas fazem ressalvas à proposta, principalmente em relação à dificuldade de fiscalização.
Alguns avaliam, porém, que a negociação entre grandes usuários de água pode ser benéfica para um uso mais eficaz do volume dos rios.
"Pode funcionar melhor do que uma decisão onde o poder público vem e suspende a outorga de todos", diz o pesquisador Pedro Cortês, coordenador da Rede Internacional de Estudos Sobre Meio Ambiente e Sustentabilidade.
Segundo ele, o modelo é bastante usado em países como Espanha e Austrália. "O debate para ver se ele vai funcionar no contexto brasileiro é muito salutar", diz.
Presidente da ANA e autor da proposta, Vicente Andreu Guillo diz que o "mercado da água" é uma das lições da atual crise de abastecimento. "Não é uma panaceia, mas precisamos da criação de instrumentos econômicos para auxiliar na gestão da água".
O importante, reforça Guillo, é que esse mercado de água obedeça a três critérios claros. "Que seja restrito [com negociações para uma mesma área geográfica], temporário e público". "A água é e vai continuar sendo pública, como determina a Constituição", diz.
Fiscalização
A falta de um sistema eficiente de fiscalização da captação de água nos rios e represas pode ser um dos entraves à proposta da ANA (Agência Nacional de Águas) de criar um mercado do setor, dizem especialistas.
"Além de saber como o mercado vai funcionar na prática, a dificuldade de fiscalizar as captações é muito grande", afirma Pedro Cortês, geólogo coordenador da rede Internacional de Estudos Sobre Meio Ambiente e Sustentabilidade.
Segundo ele, no caso da indústria, que normalmente tem uma área pequena em relação ao rio para pegar água, monitorar o quanto está sendo retirado é mais fácil.
"Em uma propriedade agrícola, com grande extensão em relação ao rio, a captação pode ser disfarçada na madrugada", diz o especialista.
Para o professor Carlos Tucci, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a proposta da ANA é interessante por regular uma situação que no futuro poderia ocorrer na informalidade.
No entanto, ele também observa a importância da fiscalização para que o projeto dê certo. "Num contexto de crise, se você não tiver fiscalização com poder de polícia, não adianta que o governo conceda outorgas [autorizações de captação]. O usuário vai no rio, capta a água e ninguém fica sabendo".
Para Tucci, as novas regras, no entanto, não poderiam estar acima das que existem na lei do saneamento.
A legislação prevê que, em caso de crise, o abastecimento humano e para animais deve ser prioritário.
Ideia que, para Vicente Andreu Guillo, presidente da ANA, precisa ser melhor discutida no futuro.
"O que é mais importante? A água que vai para a produção de alimentos ou para encher a piscina?", indaga Guillo. Da forma como a distribuição é feita hoje, o lazer se sobrepõe à agricultura, porque não é possível separar a água que vai para a torneira daquela que vai para a piscina.
Especulação
Roberto Malvezzi, pesquisador da Pastoral da Terra e que acompanha a seca do rio São Francisco e do Nordeste, vê riscos na criação de um mercado de águas no Brasil.
Para ele, esse instrumento poderia criar especuladores. "Não vejo como isso poderia ajudar a crise. Quanto mais escassear uma bacia, mais vai aumentar o valor comercial da água. E não podemos colocar o valor de acordo com a lógica do mercado", diz.
Assim como Malvezzi, Francisco Lahóz, secretário executivo do consórcio PCJ (empresas e prefeituras que usam água da região de Campinas), acredita que um mercado de águas, mesmo que temporário, pode alterar o caráter público da água no país.
"Existem outras alternativas vigentes que podem flexibilizar o sistema de outorgas", afirma Lahóz. Para ele, conceder autorizações coletivas de captação de água a cooperativas de produtores pode ser um caminho.
Ele opina que o modelo, já aplicado em Minas Gerais, pode incentivar a economia de água em polos industriais e cooperativas agrícolas.
Matéria originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo