Por Isabel Versiani e Dimmi Amora
Os limites de velocidade dentro das cidades brasileiras são em geral muito altos, alerta o diretor do Banco Mundial para Transporte, Pierre Guislain. Ele está no Brasil esta semana para seminário global promovido pela instituição sobre segurança nas estradas, cuja intenção é cobrar dos governos medidas para tentar garantir cumprimento de metas de redução de mortes por acidentes de trânsito.
Guislain elogiou a política de redução da velocidade na capital paulista e disse que as cidades que conseguiram diminuir os índices de acidentes baixaram para 30 km/h a 50 km/h os limites nas áreas centrais. Guislain também elogiou os programas de bicicleta em São Paulo e Rio de Janeiro, mas alertou que são necessários mais estudos para apurar seus impactos na melhoria da segurança no trânsito das cidades.
Segundo ele, apesar de ser um tema de pouco destaque na sociedade civil, as mortes no trânsito no Brasil chegam a 45 mil por ano, com prejuízo estimado em até US$ 90 bilhões.
O diretor criticou os carros brasileiros pela falta de segurança. "O paradoxo é que o Brasil adota padrões bastante elevados para os carros destinados à exportação para os EUA e Europa", afirmou nesta entrevista por e-mail.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Folha – A regulação do Brasil para segurança no trânsito é relativamente bem avaliada. Por que o país tem índices tão ruins de morte no trânsito, mesmo na comparação com outras economias de renda média?
Pierre Guislain – O Brasil enfrenta significativos desafios de segurança no trânsito na comparação com outros países. Em 2013, por exemplo, o Brasil teve 23,6 mortes no trânsito por grupo de 100 mil habitantes, enquanto os países com as melhores performances tiveram de 3 a 5 mortes. Na América Latina, o Chile e a Argentina tiveram cerca de 12 mortes por 100 mil habitantes. Também estimamos que o custo econômico de mortes e ferimentos no trânsito é de US$ 60 bilhões a US$ 90 bilhões por ano; isso é insustentável e afeta mais os mais pobres.
Um crescente índice de motorização, particularmente de motocicletas, nos últimos 15 anos representam um grande desafio para o país. Autoridades têm desenvolvido bons programas de segurança no trânsito nos níveis federal, estadual e municipal, mas é importante implantar uma política totalmente integrada que gere resultados de maior impacto. Finalmente, a segurança no trânsito precisa se tornar uma questão prioritária para a sociedade civil. Em 2012, houve cerca de 56 mil homicídios no Brasil e segurança é um tópico muito presente na agenda política e na mídia. Mas quem fala sobre as 45 mil pessoas que morreram em acidentes de carro no mesmo ano?
A imprudência dos motoristas brasileiros é frequentemente apontada como causa importante do número elevado de acidentes no país. O que explica isso e como lidar com o problema?
A imprudência no trânsito é uma questão comportamental, e não é específica do Brasil. Infelizmente, trata-se de um problema mundial. Os motoristas implicitamente assumem que não vão morrer atrás de um volante, acidentes ocorrem com os outros. Até que acontece com alguém próximo ou com um parente, aí se torna uma "fatalidade". Esse raciocínio, obviamente, prevalece principalmente entre motoristas jovens que, de uma maneira geral, toleram níveis de risco mais elevados. No Brasil, 50% das pessoas que morrem em acidentes de carro têm de 15 a 39 anos de idade. Enfrentar esse desafio demanda uma execução efetiva das leis de trânsito, assim como campanhas para mudar o comportamento de motoristas, pedestres, motociclistas e ciclistas. A possibilidade de morrer no trânsito deve sempre ser remota, enquanto a possibilidade de ser pego pela polícia deve ser bem elevada, ou pelo menos vista como elevada.
É importante, no entanto, não focar apenas nos fatores comportamentais que causam acidentes, mas em todo o sistema de transporte. Por exemplo, mesmo quando um acidente é provocado por imprudência na direção, veículos, vias e acostamentos mais seguros vão evitar que o erro se transforme em morte ou em ferimento grave.
Que medidas específicas podem ser adotadas para mitigar os riscos associados à motocicleta?
A primeira providência é usar o capacete, assegurar a adoção dessa regra básica. No Brasil, observamos alguma adesão em áreas urbanas, mas muitos motociclistas não usam o capacete em áreas rurais ou nas estradas.
A aplicação mais rígida de limites de velocidade, incluindo o uso de radares para motocicletas e licenças progressivas, também fazem parte da solução. A segregação de motocicletas e outros veículos também é possível em grandes vias e, se bem concebida, melhoram a segurança.
Como os senhores avaliam o padrão de segurança dos veículos vendidos na América Latina, e no Brasil em particular?
Os padrões de segurança dos veículos vendidos na América Latina variam muito. No Brasil, esses padrões estão claramente abaixo dos adotados nos Estados Unidos e na Europa. O paradoxo é que o Brasil adota padrões bastante elevados para os carros destinados à exportação para os EUA e Europa. Mas há uma evolução em curso no Brasil nessa frente: por exemplo, um novo e melhor padrão de segurança acabou de ser aprovado para freios de motocicletas. Esse é claramente um passo na direção correta.
Qual o peso dos limites de velocidade para os acidentes no trânsito? Essa deve ser uma medida prioritária? Há um limite considerado ideal para o trânsito urbano?
Limites de velocidade são críticos para a segurança no trânsito no Brasil, e estimamos que a velocidade é causa ou fator agravante de 80% dos acidentes de trânsito graves no país. A questão varia de acordo com a rua, estrada e também entre as cidades. Nas estradas, por exemplo, os limites em geral são adequados. Nas cidades, com algumas exceções como São Paulo, que recentemente estabeleceu o limite de 50 km por hora em todas as ruas, os limites são em geral muito altos. Apesar de não haver um limite ideal para o tráfego urbano, cidades com bom desempenho no mundo estabeleceram um limite geral de 50 km por hora, chegando a 30 km por hora em áreas de tráfego reduzido onde há muitos pedestres e ciclistas. Além da velocidade adotada, a aplicação efetiva dos limites pode ser ainda mais importante, tanto em ruas urbanas como em estradas.
Há uma correlação entre investimento em transporte público de massa e segurança no trânsito?
Vemos o transporte público como uma importante maneira de reduzir mortes em acidentes de carro e, consequentemente, de melhorar a segurança no trânsito de uma maneira geral. Mas a introdução do transporte público precisa ser sempre acompanhada de um gerenciamento cuidadoso da segurança do pedestre porque ele vai inevitavelmente resultar em mais gente caminhando.
Quais medidas o Brasil tomou para se adequar à meta de redução de mortes no trânsito estabelecida para 2020? Há alguma chance de o país cumprir a meta?
O Brasil tem adotado uma série de medidas para endereçar o desafio da segurança no trânsito. Algumas dessas medidas dizem respeito a infraestrutura, a normas veiculares, e outras ao Código Brasileiro de Trânsito, e vão desde a Lei Seca à elevação de multas. O Brasil está no caminho certo, o número de mortes caiu de 2012 para 2013, mas ainda há um bom caminho a percorrer. Por isso estamos apoiando os esforços do país em aumentar a segurança nas vias. Alguns dos nossos mais recentes projetos no Brasil incluíram a revisão de capacidade gerencial de segurança no trânsito nos Estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Bahia. Há alguns bons exemplos [no mundo] do que pode ser alcançado. A Espanha, por exemplo, reduziu as mortes no trânsito em 70% desde 2000. E com apenas 3 mortes por 100 mil habitantes, a Suécia tem demonstrado que ter uma "Visão Zero" não é apenas um sonho, mas pode se tornar uma realidade.
O que é mais eficiente para conter acidentes: multas elevadas ou campanhas de educação no trânsito?
Não há uma "bala de prata" para lidar com questões de segurança no trânsito. Países que foram bem sucedidos nessa questão implementaram programas holísticos, lidando com fatores de risco chaves: gerenciamento de segurança nas vias, com instituições públicas e a sociedade civil equipadas para monitorar resultados; projetos de infraestrutura viária mais seguros, veículos mais seguros, mudança de comportamento dos usuários por meio da efetiva aplicação de leis de trânsito e campanhas e uma resposta emergencial rápida para salvar vidas preciosas.
Como os senhores veem os aplicativos de trânsito que muitas vezes são usados para compartilhar informações sobre blitz? Faz sentido discutir uma regulação/controle para isso?
Alguns desses aplicativos têm um impacto adverso sobre a segurança no trânsito. Particularmente aqueles que oferecem a possibilidade de alertar motoristas sobre controles policiais e radares de velocidade podem representar um desafio adicional aos esforços de melhorar a segurança. A aplicação das leis de trânsito é um elemento importante das respostas das autoridades públicas à questão e isso pode minar essas respostas. Informar as pessoas sobre onde devem reduzir a velocidade na verdade é uma maneira de informá-las sobre onde podem acelerar também. Por outro lado, podem haver alguns aplicativos que contribuem para aumentar a segurança no trânsito. Então, aguardamos com interesse o uso da tecnologia como um apoio ao esforço de aumentar a segurança no trânsito.
O uso da bicicleta tem crescido no Brasil. Dadas as características das principais cidades brasileiras, a bicicleta pode se tornar uma alternativa significativa aos carros, contribuindo para uma redução dos acidentes?
Essa pergunta transcende a agenda da segurança no trânsito, e na verdade lida com a mobilidade urbana. Bicicletas podem de fato se tornar uma alternativa aos carros, considerando principalmente o número relativamente elevado de deslocamentos curtos que são feitos. O sucesso de programas como BikeSampa ou BikeRio mostra o potencial elevado para bicicletas no futuro próximo. Algumas cidades, entre as maiores do Brasil, desenvolveram programas de infraestrutura para atender a necessidades específicas dos ciclistas. O impacto do uso crescente da bicicleta sobre a segurança ainda é incerto e demanda mais estudos e análises das evidências e dados específicos. É uma questão interessante, porque de um lado temos mais carros, mas de outro temos mais usuários vulneráveis nas vias.
Entrevista publicada originalmente no jornal Folha de S. Paulo.