Por Milton Jung
Com 18 anos mal completados, lá estava eu na porta do centro de avaliação para fazer o teste que me permitiria receber a carteira de motorista — ou carta, como dizem aqui em São Paulo. Apenas algumas manobras depois, o fiscal perguntou se eu já dirigia anteriormente dado os cacoetes que apresentava na condução do carro. Sem muito constrangimento e até com uma ponta de orgulho, respondi que sim, pois fazia alguns anos que era testado pelo meu pai, inicialmente sentado no banco do carona e tendo o direito de segurar a direção enquanto ele controlava os pedais e a marcha. Demorou um pouco para o pai me dar a chance de trocar as marchas no câmbio manual e, muito mais do que eu gostaria, para assumir o comando do carro definitivamente.
As oportunidades costumavam surgir aos sábados à noite quando nós saíamos de casa, no bairro do Menino Deus, em direção a sede da rádio Guaíba, centro de Porto Alegre, onde o pai apresentava o Correspondente Renner. O passeio à noite era estratégico, pois o caminho estava geralmente livre.
O prazer de sentar no banco do motorista, engatar a primeira marcha e comandar o carro por conta própria só apareceu mais tarde nas ruas praticamente vazias da praia que frequentávamos nos períodos de férias e mesmo assim sob o olhar atento e preocupado dele.
Na realidade, o pai repetiu comigo a mesma experiência que teve com meu avô quando aprendeu a dirigir. Apesar de um pouco ansioso, foi um excelente professor tendo me passado uma série de recomendações que mantenho até hoje. Por exemplo, foi ele quem me chamou atenção para quando tiver de ultrapassar um ônibus que esteja parado no ponto: “sempre há o perigo de um passageiro cruzar na frente do ônibus e atravessar a rua sem prestar atenção” — alertava. Para o motorista não ser surpreendido e reduzir o risco de atropelamento, ele ensinou-me a olhar por baixo do ônibus e ver se não havia nenhum pé se aventurando por ali.
Nós dois somos de gerações diferentes mas ambos nascidos em uma época em que o carro era objeto reverenciado e a carteira de motorista, sinal de liberdade. Não por acaso a minha primeira habilitação foi expedida três dias depois de completar 18 anos. Hoje, ele ainda admira mais os automóveis do que eu. Apesar de me considerar um “carro-dependente”, sou defensor do uso da bicicleta e do transporte público sempre que possível, impactado por uma mudança de consciência que vem surgindo em diferentes sociedades. E, claro, pelos enormes congestionamentos que tiram qualquer um do sério.
Em outubro de 2015, a Confederação Nacional da Indústria (CNI), divulgou que pelo menos 31% das pessoas passam mais de uma hora no trânsito diariamente, percentual que chega a quase 40% nas cidades com mais de 100 mil habitantes.
Um mês depois, a Rede Nossa São Paulo e a Fecomercio mostraram que quem vive em São Paulo e dirige automóvel tende a perder, em média, 2h38 minutos, nos deslocamentos de casa para o trabalho, para a escola, para o mercado e para qualquer outro canto que se fizer necessário, no decorrer de um dia.
Metodologias à parte, uma e outra pesquisa ressaltam o que eu, você e toda a torcida do …. vá lá, toda torcida do Grêmio já perceberam: não dá mais para darmos continuidade a esta apologia do automóvel que marcou nossas gerações. E talvez por isso mesmo, não repeti a experiência do rito de “passagem do volante do carro” para os meus filhos.
Tenho a impressão, pelo que vejo em alguns jovens, incluindo os meus dois meninos — o mais velho já com a carteira de habilitação na gaveta e nenhuma intenção de dirigir, ao menos por enquanto -, de que atual geração começa a enxergar a relação com o carro de maneira diferente. Hoje, temos muito mais informações dos malefícios que os automóveis provocam no meio ambiente com aumento dos níveis de poluição e prejuízos à qualidade de vida.
Segundo o médico Paulo Saldiva, da Universidade de São Paulo, os gases tóxicos e a fuligem do escapamento dos veículos matam 4.600 pessoas por ano na capital paulista.
Se não mata, engorda — dizia minha mãe.
Isso mesmo, a poluição provocada pela circulação de carros e pela fumaça de cigarro, também, com suas partículas minúsculas e agressivas provocariam inflamações generalizadas e atrapalhariam a capacidade do corpo de queimar calorias. Ao menos é o que tenta nos convencer estudo do qual fez parte o professor Hong Chen, da Universidade de Toronto, no Canadá.
A preocupação com a saúde não é única justificativa para afastar os jovens dos carros. Eles também estão muito mais conectados, o que, em tese, reduziria a exigência de tantos deslocamentos pela cidade. E, a despeito da qualidade do transporte público, temos maior oferta de metrô e ônibus, além de os aplicativos terem deixado os táxis e os motoristas privados mais acessíveis.
A dar respaldo para o que penso sobre a redução da dependência do carro, temos ainda trabalho apresentado durante o Simpósio de Engenharia Automotiva, realizado em São Paulo, em agosto do ano passado.
Após ouvir 404 estudantes, entre 18 e 25 anos, da capital e de Ribeirão Preto (SP), o jornalista Lupércio Tomaz, da rede social Campus Universitário, informou que 59% dos jovens entrevistados ainda não tinham carteira de habilitação. Verdade que desses, 95% disseram que pretendiam tirá-la um dia. Levando em consideração que todos já tinham idade para pegar sua carteira, os dados me levam a pensar que ao menos eles já não demonstram a mesma pressa que a turma da minha idade.
Dois outros aspectos interessantes que nos dão esperança de que começa a surgir um novo olhar entre os jovens quando o assunto é o automóvel:
Mesmo que tivessem dinheiro suficiente, antes de pensar em comprar um carro, os jovens que participaram da pesquisa disseram que preferiam fazer intercâmbio cultural, participar de algum outro projeto e viajar para estudar. Ou seja, colocaram o desenvolvimento pessoal acima do sonho do carro próprio que moveu muitos da minha geração (eu, inclusive!)
Para 51% deles, o carro é visto como meio de transporte, portanto, se o querem é porque têm necessidades práticas. O melhor é que a maioria não cultiva mais a ideia de que o veículo simboliza a liberdade — apenas 18% concordaram com esse pensamento -, o que demonstra que estão buscando essa expectativa em outros caminhos.
Com todas as ponderações que se deve fazer diante de estudo que se restringe a um grupo de pessoas, em duas localidades apenas, o que impede que se conclua que esta seja a visão de toda população jovem brasileira, me parece evidente que há mudanças na relação dos mais novos com o automóvel. A velocidade com que essa transformação ocorre no Brasil apenas não é maior porque o investimento em transporte público ainda é baixo e a política de incentivo do uso do carro prevalece na maior parte das cidades brasileiras.
Artigo originalmente publicado no portal do portal do jornalista Milton Jung