FABRÍCIO LOBEL – FOLHA DE S. PAULO
Falta de vagas para abrigar crianças vulneráveis perto de suas famílias, poucas equipes especializadas disponíveis, infraestrutura deficiente e apoio psicológico escasso.
Todos esses fatores, que cercam milhares de crianças com menos de 12 anos, tiveram no último dia 2 mais um desfecho trágico com a morte de Italo, 10, morto por policiais militares após furtar um carro na região do Morumbi.
Filho de uma família desestruturada, com o pai na prisão e a mãe ex-detenta, o garoto já havia passado pelo menos três vezes por abrigos públicos, época em que já praticava pequenos delitos.
O mapeamento da rede de amparo a crianças em situação de vulnerabilidade mostra uma sequência de falhas. Enquanto isso, promessas da gestão Fernando Haddad (PT) no setor patinam e não são concluídas.
"Infelizmente, a rede de amparo à criança segue o padrão da educação, da saúde e do transporte público no país", diz o promotor da vara da infância Tiago Rodrigues.
O primeiro gargalo do atendimento é o da falta de estrutura do Conselho Tutelar. O órgão é responsável pelo acompanhamento emergencial de crianças que estejam com seus direitos sob risco.
O ideal é que uma cidade como São Paulo tenha 112 conselhos tutelares. Embora a gestão Haddad tenha criado oito, São Paulo ainda tem apenas 52 unidades. A atual administração prometeu formar 440 conselheiros, mas somou, até agora, apenas 88.
Até ao menos março deste ano, os conselheiros do Butantã e do Rio Pequeno não podiam usar os carros exclusivos para o serviço, devido a falta de motoristas.
Entre as atribuições do conselheiro está o encaminhamento de crianças à Justiça. Mas, na cidade de São Paulo não são todos os fóruns regionais que dispõem de varas infantis, o que sobrecarrega ainda mais o Judiciário.
Quando a Justiça entende que o jovem deve ser levado para um abrigo, surge uma nova barreira: encontrar vagas. É comum que, por falta de espaço, crianças sejam abrigadas longe de casa.
Na cidade há casos de crianças cujas famílias moram em Itaquera, na zona leste, e que estão abrigadas em Santana, na zona norte.
A distância dificulta que as equipes do próprio abrigo e dos serviços de assistência social consigam fazer a reinserção do jovem na família.
Uma vez no abrigo, a criança passa a viver com 19 companheiros, que ali chegaram por motivos completamente diferentes. Por isso, a convivência nem sempre é pacífica.
Aos abrigos, geridos por ONGs em convênio com a prefeitura, não cabe, por exemplo, fornecer acompanhamento psicoterapêutico. Mas, sempre que julgarem necessário, devem encaminhar as crianças para os psicólogos do SUS.
É a vez de outro problema. Os jovens muitas vezes ficam no meio termo entre um atendimento básico feito nas UBSs (Unidade Básica de Saúde), sobrecarregadas, e o tratamento oferecido pelo Caps (Centros de Atenção Psicossocial), voltado para transtornos psiquiátricos severos, também saturados— a atual gestão prometeu 30 centros, mas apenas 4 foram entregues.
O atendimento de média gravidade fica prejudicado, segundo uma psicóloga do Caps ouvida pela reportagem.
O promotor da infância Eduardo Dias observa que, embora tenham relativa estrutura, alguns dos abrigos têm relatos de falta de encaminhamento a serviços psicológicos, dificultando o avanço do desenvolvimento dos jovens.
"A cadeia de amparo [ao jovem] é infinitamente melhor do que há uma década. Mas certamente é preciso avançar", conclui.
SITUAÇÕES DISTINTAS
Certa vez, uma família com seis filhos tinha ao lado de sua casa um muro que ameaçava cair. Diante do risco de um acidente fatal, os seis filhos foram parar em um abrigo para crianças e adolescentes.
Em outro caso, a criança que mora no abrigo veio de uma família que a violentou sexualmente. Um terceiro é vítima de abandono, já pratica pequenos delitos, mas, segundo a legislação, por ser menor de 12 anos não pode receber punições por crimes cometidos.
Os casos acima são contados pela secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Luciana Temer, como exemplo da diversidade do perfil de crianças que moram em abrigos públicos na cidade de São Paulo.
Esse é um dos principais motivos, segundo ela, para que o enfrentamento da questão de crianças em estado de vulnerabilidade seja tão complicado. "Com isso a gente percebe que o esforço é muito grande para lidar com todas essas situações. Ainda mais, por que lidamos com crianças que estão muito fragilizadas", explica.
Os dados da Prefeitura de São Paulo mostram que 37% das 2.367 crianças abrigadas chegaram ao serviço por serem vítimas de negligência ou maus-tratos, o caso mais preponderante.
Mas há ainda casos de abrigo de crianças e adolescentes cujos pais estão doentes, passando por sérias dificuldades financeiras ou morreram.
No abrigo, os jovens aguardam que suas famílias voltem a ter condições de recebê-las, o que é a prioridade. Mas em outros casos, são encaminhadas à adoção ou saem da guarda do município aos 18 anos.
Ainda segundo Luciana, é preciso reforçar políticas públicas que possam evitar que a fragilidade das famílias chegue a tal ponto que o abrigo das crianças e adolescentes seja a única alternativa.
"Se a mãe deixa o filho sozinho porque tem que trabalhar, ela tem que ter prioridade no acesso à creche", diz.
Para a secretária, é também preciso mudar a lógica de parte de conselheiros tutelares e do Judiciário de que o abrigo é local para resolver conflitos entre famílias.
Matéria publicada originalmente na Folha de S. Paulo.