Em junho, com a chegada do frio rigoroso, busca por esse auxílio jurídico dobrou em São Paulo
ARTUR RODRIGUES – FOLHA DE S. PAULO
As limitações dos albergues municipais de São Paulo levam moradores de rua a apelar para a Defensoria Pública em busca de vagas.
Em junho, em meio à recente onda de frio, a procura disparou: de 120 para 240 atendimentos semanais de pessoas que reivindicam espaço nos albergues a cargo da gestão Fernando Haddad (PT).
Nos últimos dias, ao menos cinco moradores de rua foram encontrados mortos na cidade –para a Pastoral do Povo de Rua, braço da Igreja Católica, a causa mais provável são as baixas temperaturas.
A Promotoria dos Direitos Humanos vai investigar eventual omissão da gestão Haddad em razão dessas mortes. A apuração visa verificar se a prefeitura tomou medidas que poderiam evitar os óbitos –por exemplo, oferecimento de assistência e abrigo.
Das pessoas que procuram a Defensoria Pública, 32% estão dormindo nas ruas, 1% mora em ocupações e 6%, em alguma outra condição. A maioria delas (61%) já pernoita em albergues, mas reivindica uma vaga fixa.
Sem isso, devido à demanda, os usuários acabam tendo de se apresentar diariamente com muitas horas de antecedência para obter uma cama, podendo inviabilizar inclusive que alguns trabalhem.
"Estou desempregado, mas como vou trabalhar se tenho que chegar aqui no começo da tarde para arrumar uma vaga?", afirmou Tiago Ramos, 31. Nesta quarta (15), ele afirma ter chegado por volta das 14h30 no abrigo da Barra Funda (zona oeste) para garantir o pernoite.
Depois de passar alguns dias frequentando um albergue de maneira regular, os usuários deveriam conseguir um espaço. "O que a gente percebe é que no centro ampliado (Bresser, Luz, Barra Funda) há uma falta de vagas", afirma Marcelo Dayrell Vivas, defensor público.
Os moradores de rua podem acabar sendo deslocados para abrigos longe de onde mantêm relações e produzem sua renda. E muitos deles se recusam a ir.
A prefeitura afirma que há 3.200 vagas para atendimento de homens, mulheres, idosos e transexuais na região central. O censo de 2015, no entanto, encontrou 3.864 pessoas nas ruas só na área da subprefeitura da Sé.
"As vagas fixas são ofertadas de acordo com a demanda de cada região. Há prioridade para pessoas convalescentes ou com mobilidade reduzida, mulheres gestantes ou com crianças, pessoas com deficiência e idosos", afirma a prefeitura.
Vagas avulsas também não garantem que as pessoas durmam na mesma cama todos os dias e tenham acesso a um armário. "Nesses casos, idosos com problemas de saúde têm problemas de ficar num leito alto (beliche) quando não há um baixo disponível", afirma Dayrell Vivas.
O defensor afirma que tem conseguido administrativamente, sem acionar a Justiça, as vagas desejadas. O segurança Roberval Araújo dos Santos, 30, diz que demorou dois meses para conseguir uma vaga fixa no abrigo da Barra Funda. "Antes, peguei pneumonia por dormir na rua", afirma ele, que procurou orientação na Defensoria.
Em frente ao abrigo, Santos e outros usuários do espaço se aglomeraram em volta do repórter para reclamar das condições de limpeza do banheiro e do local. O acesso é controlado por funcionários, que vetam a entrada da imprensa se não houver agendamento prévio e acompanhamento da equipe de comunicação da prefeitura.
A gestão Haddad afirmou que equipes de limpeza garantem a higiene do espaço.
INVESTIGAÇÃO
A apuração sobre eventual omissão da gestão Haddad nas mortes de moradores de rua fará parte de um inquérito sobre a operação da prefeitura batizada de Frentes Frias. O procedimento existe desde 2014 e tem a intenção de acompanhar os serviços prestados à população de rua durante a época de frio.
O Ministério Público afirma que ainda não recebeu os dados da operação de 2016.
"Os óbitos serão investigados em âmbito criminal, entretanto, no inquérito civil será apurado se a prefeitura deixou de adotar as providências necessárias para evitá-las", afirma a Promotoria.
O último censo de moradores de rua, de 2015, contabilizou 15.905 pessoas, sendo só 8.570 abrigados (54%). A quantidade de pessoas não acolhidas, em comparação com a pesquisa de 2011, teve um aumento de 8%.
A gestão Haddad afirma que criou 2.000 vagas permanentes desde 2013. Diz que, desde maio, abriu 13 abrigos emergenciais com mais 1.517 vagas devido ao frio, além das 10 mil já existentes.
Em nota, a gestão Haddad disse que "está, como sempre esteve, à disposição do Ministério Público para prestar todos os esclarecimentos".
'EXCEÇÃO NO FRIO'
Ex-consultor do programa De Braços Abertos, ação da gestão Fernando Haddad (PT) de combate ao crack, o psiquiatra Dartiu Xavier diz que, em situações extremas, como na atual onda de frio, a prefeitura deveria abrir exceções para que moradores de rua mantenham seus pertences para se esquentar.
Moradores de rua reclamam que colchões e papelões usados para proteção contra o frio são recolhidos pela GCM (Guarda Civil Metropolitana), como mostrou o jornal "O Estado de S. Paulo".
Haddad disse que os agentes são proibidos de recolher pertences pessoais da população de rua, mas que há uma orientação para impedir a "favelização" de praças públicas. "O que estamos tentando impedir é a refavelização", afirmou Haddad na terça (14).
"Tem uma nuance. O argumento do prefeito é valido, mas você não pode pegar as coisas do outro só porque ele está na rua. Há a questão do espaço público: a rua é de todo mundo ou só dos que se comportam como se espera?", diz Xavier, que é professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Por mais que o prefeito ressalve que os agentes da GCM não podem recolher objetos pessoais, Xavier afirma que "sobram relatos de guardas que recolhem até documentos" de moradores de rua.
O psiquiatra avalia que, apesar de pontos negativos, como a ação da GCM, há saldo positivo no tratamento da prefeitura em relação à população de rua devido especialmente ao De Braços Abertos.
"Se comparado com as administrações anteriores, que faziam desocupações com violência e insultavam direitos humanos, Haddad tem grande mérito", defende.
Matéria publicada originalmente na Folha de S. Paulo.