Desigualdade – questão de território

Especialistas discutem papel das ações públicas na redução da desigualdade

PHILIPPE SCERB, COLABORAÇÃO PARA A FOLHA DE S. PAULO

Muitos acharam que a modernização das metrópoles brasileiras a partir do século passado levaria a um maior equilíbrio social e espacial.

Não foi o que aconteceu. Apesar de progressos recentes na redução da desigualdade de renda e na expansão de serviços, as desigualdades territoriais se acentuaram.

"Ampliou-se muito a cobertura das políticas sociais, mas tanto oferta quanto qualidade seguem sendo mais precárias nas periferias. A diferença em relação ao centro é abissal", diz Gabriel Feltran, professor de sociologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e pesquisador do CEM (Centro de Estudos da Metrópole).

É verdade que já não se pode opor centro e periferia como blocos uniformes, já que ocorreram a depreciação de áreas centrais e o desenvolvimento de regiões periféricas.

Mas as disparidades permanecem evidentes. Há discrepância entre investimentos públicos feitos em diferentes regiões das cidades, fenômeno que o empresário Oded Grajew qualifica de "incoerência entre recursos e carências". Grajew coordena a Rede Nossa São Paulo.

Especialistas como ele em políticas públicas defendem que a ação do Estado leve em conta as especificidades dos territórios para garantir direitos e reduzir desigualdades.

O Estado, baseado no princípio do universalismo (igualdade de todos perante a lei), seria incapaz de operar frente à pluralidade de condições e necessidades de diferentes territórios. A heterogeneidade dos espaços das metrópoles dificultaria ainda mais a consolidação de uma rede eficaz de proteção social.

A consideração do território na formulação e implementação de políticas públicas só se dá de forma passiva, segundo o professor de economia e sociologia da UFABC, Arilson Favareto.

Particularidades locais, como questionamentos de moradores a respeito de determinada política, não são considerados na sua formulação.

"Boa parte das políticas no Brasil são territorialmente cegas e ignoram o conjunto de repercussões que vão causar", afirma Favareto.

De acordo com ele, isso se deve, entre outros fatores, à "ditadura do curto prazo", que impera na gestão pública. Envolver a população e considerar o espaço geográfico na formulação da política implica maiores custos e prazos para sua implantação.

A segregação socioespacial, mecanismo de reprodução da desigualdade, tem sido pouco combatida no Brasil, de acordo com Eduardo Marques, professor de ciência política da USP.

Considerando a segregação socioespacial como a existência de espaços relativamente homogêneos e distantes dentro de um aglomerado urbano, Marques afirma que as atividades econômicas tendem a se concentrar, relegando às áreas mais periféricas piores condições de vida e vulnerabilidade.

Restaria ao Estado promover políticas específicas de gestão do território, intervir mais fortemente no mercado de terras, taxando, por exemplo, de forma diferenciada algumas regiões e estabelecendo zoneamentos em função das necessidades específicas.

Pelo fato de os problemas estarem concentrados em determinados territórios, onde há um "acúmulo de desvantagens", haveria "ganhos significativos se a implementação de políticas públicas os levassem em consideração".

Marques defende que o território sirva de critério para políticas de combate à pobreza. Planos como o Bolsa Família deveriam, na sua visão,considerar particularidades locais na distribuição de recursos e nas estratégias para identificar beneficiários.

Determinadas populações têm menos informação e mais dificuldade de se locomover e de lidar com formalidades públicas. A consideração do território poderia promover, então, a saída do burocrata para encontrar o beneficiário -a chamada busca ativa, usada, por exemplo, no Programa Saúde da Família.

O mesmo vale para o desenho e a implementação de políticas sociais. "Quanto mais vulnerável o grupo, mais importante que a implementação da política esteja atenta aos detalhes daquele local", afirma Marques.

As diferenças, portanto, devem ser reconhecidas entre os grupos e os territórios para a redução das desigualdades. "Não temos que universalizar políticas. Temos que universalizar direitos e, para isso, muitas vezes, é preciso implementar políticas diferentes, porque as pessoas são diferentes", diz Marques.

O professor da UFSCar, Gabriel Feltran, pensa da mesma forma. "Ser negro no Brasil é diferente de ser branco, ou não? É preciso reconhecer isso para propor qualquer política de igualdade entre negros e brancos", exemplifica.

Uma abordagem territorial na formulação e implementação de políticas públicas pode incentivar a participação política de sociedade civil e usuários de serviços, por meio de conselhos.

Pode, também, significar descentralização, com decisões atribuídas a instâncias mais próximas da área onde a iniciativa vai ser executada. Por fim, pode se traduzir em adaptação da própria política à particularidade do local.

A confusão que envolve as implicações de uma estratégia territorial pode ser um dos fatores responsáveis pelo seu baixo apelo no debate público, mais afeito a discutir políticas compensatórias, como o Bolsa Família, e afirmativas, como cotas.

A professora de sociologia da PUC-SP Mônica de Carvalho é simpática a uma dimensão descentralizadora que redistribua recursos e equipamentos públicos conforme as carências de cada área.

Mas questiona a viabilidade de universalizar direitos sem universalizar políticas. "A política é a materialização dos direitos. Negar isso abre brecha para que o Estado se abstenha e relegue ao mercado a responsabilidade pela efetivação de direitos".

Segundo Carvalho, o cerne da questão foi colocado pelo economista francês Thomas Piketty no já clássico "O Capital no Século XXI".

"A discussão sobre políticas compensatórias e também territorializadas advém, em parte, da crescente escassez de recursos do Estado para garantir direitos de forma efetiva para toda a sociedade", defende a professora. Portanto, numa manobra pragmática, o Estado concentraria seus esforços orçamentários naqueles que mais precisam dos serviços.

Sem condições de aumentar a arrecadação, dada a resistência pública, os governos assumiriam como alternativa priorizar gastos compensatórios e focalizados nos seus cidadãos mais dependentes. O que estimularia o sentimento por parte de determinados grupos de que não precisam do Estado e passam a reivindicar seu encolhimento.

"O papel da política universal é também transmitir a universalidade da coisa pública, que todos pertencem a uma mesma comunidade. Políticas particulares tendem a fragmentar a compreensão social e a estrutura comum se rompe", afirma Carvalho.

Sobre a importância do território e a necessidade de a política pública se adaptar a ele, a professora também enxerga riscos.

A diferença entre os cursos oferecidos pela USP Leste, de caráter bem mais técnico, e pelo campus do Butantã da USP, de caráter mais generalista, ilustra o problema, segundo Carvalho. "O que sustenta a diferenciação? A ideia de que a população de baixa renda necessita de informação mais pragmática, porque vai entrar mais cedo no mercado de trabalho."

Carvalho registra, porém, que a consideração do território na formulação e na implementação de políticas públicas, especialmente sociais, não implica, necessariamente, em particularismos.

Na opinião dela, são relevantes as experiências que conseguem combinar uma estratégia capaz de se adaptar às especificidades do território sem, no entanto, promover algum tipo de particularização na oferta do serviço. A política não deixa de ser universal ao se inserir em uma lógica de inclusão e adaptação às características do lugar e de seus moradores.

Caso emblemático é o Programa Saúde da Família, no qual membros da comunidade atendida são recrutados pela unidade de saúde como agentes comunitários e assumem o papel de estabelecer um vínculo entre a equipe médica e a população local.

A professora de políticas públicas da UFABC Gabriela Lotta, cuja tese de doutorado se concentrou na atuação dos agentes comunitários da saúde, aponta a importância desses atores, conhecedores dos códigos e características locais e dotados de confiança da comunidade, para a eficácia da oferta de saúde.

O mesmo êxito não se observa no âmbito da educação, no entanto. Eduardo Marques, aliás, afirma que a capacidade das políticas de levarem em consideração o território, no que envolve o grau de descentralização e flexibilidade da iniciativa, varia conforme a evolução histórica das instituições dos diferentes setores.

"A comunidade da saúde aderiu há algum tempo à importância do território na implementação da política, assim como a assistência social, cujo sistema se baseia na experiência exitosa do SUS, ao passo que a comunidade da educação não incorporou essa vontade", diz o professor.

Com efeito, são grandes as resistências entre pesquisadores, gestores e educadores a uma proposta de maior descentralização e adaptação das políticas educacionais.

O sociólogo francês Choukri Ben Ayed estuda os mecanismos de reprodução das desigualdades sociais por meio da educação. O problema maior, na França, segundo ele, se concentra na disparidade de recursos físicos e humanos oferecidos a escolas de regiões com diferentes capacidades de arrecadação.

A necessidade de uma melhor redistribuição das receitas não deve, para Ben Ayed, abalar a autonomia atribuída às autoridades locais.

As propostas de adaptação de estratégias pedagógicas e conteúdo das disciplinas em função das características específicas dos territórios e do perfil dos alunos são, contudo, rejeitadas pelo professor. "Esse discurso da adaptação, no meu ponto de vista, pode se tornar apenas um eufemismo para a hierarquização".

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Matéria publicada originalmente na Folha de S. Paulo.
 

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