#MetasDeSP: Porquê a meta para resíduos precisa ser revista

Análise do item 28 do Programa de Metas proposto pela Prefeitura, que prevê reduzir em 100 mil toneladas/ano os rejeitos de resíduos enviados a aterros municipais 

Artigo de Guilherme Turri, especialista em estratégias e mobilização social para resíduos sólidos e fundador da Sintropia Laboratório de Inteligência Social 

O plano de metas 2017-2020, apresentado no dia 30 de março, foi recebido com desânimo por técnicos e organizações que trabalham com resíduos na cidade de São Paulo. No contexto do #CidadeLinda, eram esperadas metas ambiciosas neste tema e a implementação de modelos inovadores para a ampliação de tratamento dos resíduos gerados na cidade – assim como as principais cidades do mundo já fazem. O que vimos foi uma proposta tímida em seus objetivos e vaga em suas linhas de ação.

Para além da questão ambiental, resíduos são recursos e podem tanto gerar emprego e renda para a população quanto desonerar o já tão comprometido orçamento público. 

Além dos baixos índices de reciclagem, São Paulo engatinha com iniciativas para tratar seus resíduos orgânicos, que compõem mais de 52% dos resíduos gerados na cidade. Esta condição precária é inaceitável para uma cidade do porte e relevância de São Paulo – e está em desacordo com as legislações federais e municipais. 

Este texto tem como objetivo apontar as falhas e oportunidades perdidas nesta versão preliminar do plano. Compartilho aqui algumas percepções sobre este desafio, tema para o qual tenho me dedicado nos últimos anos e acredito poder contribuir.

Percepções:

1. Desconexão com a as legislações municipais e federais

O primeiro apontamento sobre a meta de resíduos apresentada no Plano 2017-2020 é sua desconexão com o Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos da cidade de São Paulo (2013). 

Para quem não sabe do que se trata, a partir da Política Nacional de Resíduos Sólidos – Lei Federal nº 12.305 (PNRS, 2010) –  todo município fica obrigado a elaborar um plano de gestão de seus resíduos, segundo as diretrizes técnicas definidas por esta lei (que também traz conceitos importantes como a segregação em 3 frações, a noção de responsabilidades compartilhadas e outros aspectos importantes que veremos mais a frente).

São Paulo elaborou seu plano em 2013, com a participação de diversos técnicos e entidades da sociedade civil e o validou por meio de um processo democrático, sancionado pelos poderes executivo e legislativo da cidade. Por mais que as metas (ambiciosas) ali colocadas sejam passíveis de crítica por conta de sua viabilidade, suas diretrizes conceituais e técnicas são incontestáveis. 

Dispondo deste documento orientador, a meta e as linhas de ações apresentadas não refletem as diretrizes definidas pelo PGIRS e pela PNRS.

2. Erro conceitual

Rejeito, por definição, é aquilo que não é possível ou economicamente viável ser tratado (reciclado ou reaproveitado). Nesta categoria entram as fraldas usadas, bitucas de cigarro, e muitas outras coisas. Pela definições da PNRS a destinação correta dos rejeitos são os aterros sanitários (não há outra destinação correta possível, de acordo com a lei). 

Acontece que nós destinamos os RESÍDUOS ORGÂNICOS (52% de todo o lixo produzido) para os aterros junto com os REJEITOS, justamente por não separarmos e não compostarmos – o que contraria as diretrizes definidas pela lei federal, que define a compostagem como a destinação correta para este tipo de resíduo. Além disso, a maior parte dos RECICLÁVEIS também vai para os aterros, por ainda não termos processo de coleta seletiva e um mercado de reciclagem eficaz. 

Da forma como está redigida, a meta só pode significar uma coisa: REDUZIR A GERAÇÃO (produção e consumo) – o que certamente não é o objetivo da gestão. 

A redação correta deveria ser algo como: compostar x% dos resíduos ORGÂNICOS e reciclar y% dos resíduos RECICLÁVEIS gerados, reduzindo assim em z% o total de resíduos sólidos destinados aos aterros. 

3. A meta é pífia

100 mil toneladas pode parecer muito, mas não é 1,8% do que a cidade envia aos aterros anualmente (em 2016, foram 5,5 milhões de toneladas). E se compromete a chegar neste número apenas no último ano da gestão. Isto representa apenas 7 dias da geração de resíduos da cidade – de um total de 1460 dias que a gestão vai governar. A própria recessão econômica, que por afetar o consumo, afeta a produção de resíduos, pode cumprir boa parte desta meta.

Para se ter ideia de como já temos soluções disponíveis para muito mais do que isso, se instalarmos um pátio de compostagem como o da Lapa em cada uma das 32 prefeituras regionais para tratar/compostar apenas os resíduos de feiras e podas – nada mais do que 3.000 metros quadrados e cento e poucos mil reais de implementação cada (algo que já está previsto no Plano Municipal de Resíduos e que precisa ser cumprido) – já chegaríamos em cerca de 160 mil toneladas ano desviadas dos aterros (fora toda a geração de composto orgânico pra usar em agricultura e zeladoria urbana). 

E há mais um leque de ações possíveis e acessíveis: compostagem comunitária (que pode gerar emprego e renda pra comunidade), compostagem doméstica (basta ensinar que as pessoas fazem, como comprovou o Projeto Composta São Paulo) e mesmo o estímulo e facilitação para que grandes geradores privados compostem (bares e restaurantes estão demandando compostagem de seus resíduos, mas legislações antiquadas travam esta possibilidade). 

4. Ausência de ações para a separação correta em 3 frações

Nas linhas de ações que compõe a meta de resíduos não há nenhuma ação ou indicação de que a Prefeitura irá se adequar às diretrizes federais da PNRS, que determinam a segregação em 3 frações: Resíduos Secos (recicláveis), Resíduos Úmidos (orgânicos/compostáveis) e Rejeitos. 

A segregação na fonte – ou seja, separar e coletar de forma diferenciada os resíduos onde foram gerados – é de fundamental importância para a viabilidade técnica e mesmo financeira do tratamento de cada tipo de resíduo. 

Para que se entenda melhor: quando separamos e coletamos os resíduos orgânicos adequadamente, podemos fazer a compostagem por meio de um processo natural e sem nenhum tipo de maquinário de alta tecnologia e nenhum insumo químico. No final do processo, teremos adubo orgânico de alta qualidade. Mas se você tiver pilhas e baterias, ou fraldas usadas, seu composto estará contaminado.

Além disso, quando separamos corretamente os resíduos orgânicos e também os rejeitos, temos por consequência uma melhor coleta seletiva de resíduos secos (recicláveis). Os materiais chegam mais higienizados (algo que é muito importante para os trabalhadores das cooperativas de reciclagem e mesmo das centrais mecanizadas) e geram maior aproveitamento e rentabilidade para os indivíduos e organizações que trabalham com isso.

É inadiável que a Prefeitura disponibilize tanto lixeiras adequadas (RECICLÁVEIS, COMPOSTÁVEIS e REJEITOS) quanto promova a coleta seletiva diferenciada de cada um destes resíduos – e que inicie gradualmente (mas de forma consistente) o tratamento adequado de cada uma destas frações. 

5. Ausência de projeto para logística reversa e responsabilidade do setor privado

Ainda de acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, a indústria e comércio tem responsabilidade e devem colaborar com a logística reversa, ou seja, o recolhimento dos produtos e embalagens que oferecem ao mercado. Isto deve ser feito de maneira direta, montando sistemas proprietários de recolhimento ou, de maneira indireta, estabelecendo acordos setoriais, termos de compromisso e financiando fundos públicos para coleta e tratamento de resíduos.

A gestão atual, que diariamente manifesta seu interesse e abertura para parcerias com o setor privado na resolução dos problemas da cidade, precisa estabelecer de forma clara e firme a responsabilidade e participação da indústria e comércio na questão dos resíduos, como manda a lei federal. 

6. Descontinuidade de projetos da gestão anterior

Os programas de compostagem doméstica e condominial iniciados na gestão anterior não figuraram nas de linhas de ações do plano de metas 2017-2020.

A partir do Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos, São Paulo deu início a alguns projetos de tratamento de resíduos orgânicos extremamente bem sucedidos. O Composta São Paulo, por exemplo, é um projeto que mobilizou milhares de paulistanos a iniciarem a compostagem de seus resíduos orgânicos em casa, contando com uma aprovação altíssima de seus participantes (97% de satisfação). Trata-se do maior projeto de compostagem domiciliar já realizado no Brasil, que virou referência internacional por sua implementação e resultados.

Seja por desconhecimento ou por motivações políticas, projetos bem sucedidos não podem deixar de ser continuados e ampliados numa eventual troca de gestão. Continuidade é um dos principais elementos para sucesso e impacto de políticas públicas, especialmente num tema tão complexo quanto resíduos urbanos.

7. Modelo concentrado, que impede inovação

Diferentemente do programa de governo, onde a coligação "Acelera SP" comprometia-se a implementar pátios de compostagem próximos e GERIDOS POR AGRICULTORES e outras ações de fomento a pulverização e diversificação do setor de resíduos, no plano de metas (tanto nas metas quanto nas linhas de ações), a gestão indica que vai seguir operando apenas com o duopólio da coleta domiciliar (LOGA e ECOURBIS) e com o duopólio da varreção e podas (SOMA e INOVA), não abrindo a possibilidade de concorrência e inovação para novos entrantes – como, por exemplo, na implementação de novos pátios de compostagem de feiras e podas. 

Tratam-se dos maiores contratos da cidade, que amarram bilhões do orçamento municipal e prendem a Prefeitura aos mesmos fornecedores por 20 anos, impedindo o uso de novas tecnologias mais baratas e de menor impacto. 

Para se ter idéia, existem mais de 5.000 empresas de compostagem em operação nos Estados Unidos. No Brasil, devido à barreiras legais e falta de estímulo e demanda do poder público, não chegamos a 70 empresas. 

Descentralizar contratos e diversificar fornecedores é o caminho para termos maior competitividade em termos de valores e, especialmente, em termos de inovação e desenvolvimento de tecnologias mais sustentáveis.

8. Desenvolvimento do empreendedorismo de resíduos

Por fim, como já acima apontado, é tanto necessário quanto oportuno o investimento na ampliação do setor de resíduos, abrindo espaço e fomentando novos empreendimentos de pequeno e grande portes que apresentem tecnologias mais eficazes e sustentáveis.

No campo dos resíduos secos (recicláveis), São Paulo conta hoje com o trabalho de mais de 20 mil catadoras e catadores, cooperativados ou autônomos. Reconhecer a importância destes agentes ambientais e desenvolver projetos que se incluam (e REMUNEREM) esta classe pelos serviços públicos e ambientais prestados é fundamental tanto para o aumentos dos índices de reciclagem, quanto do ponto de vista sócio-econômico.

No caso específico dos resíduos orgânicos, é importante explicitar a contradição que hoje vivem os empreendedores do setor de compostagem: embora a lei federal determine que resíduos orgânicos sejam compostados e que grandes geradores privados (como supermercados e centros comerciais) façam a própria gestão e custeio de seus resíduos, existem regras municipais antiquadas que não permitem ou dificultam que empresas de compostagem ofereçam serviços para estes geradores. O transporte, por exemplo, é um dos entraves, pois é exigido um tipo de caminhão que, além de caro, não é o adequado para condicionamento dos resíduos compostáveis. Hoje, dezenas de pequenos empreendedores são demandados a atender bares e restaurantes, mas não conseguem se adequar a estas regras antigas que não evoluiram junto com o mercado.  Assim, mesmo com forte interesse do setor privado, os resíduos orgânicos seguem indo para os aterros. 

Este tipo de oportunidade de regulamentação é um caminho que precisa ficar claro para a gestão, uma vez que não exige nenhum tipo de investimento e estrutura. Trata-se apenas de permitir que a própria sociedade avance e crie soluções.

Outras considerações

Há muito mais necessidades e possibilidades do que o plano apresentado dá conta. Para São Paulo se colocar lado a lado com as principais metrópoles do mundo no tema dos resíduos é preciso ambição e foco. Soluções existem e estão sendo implementadas em larga escalas em diversas cidades do mundo e, em menor escala, pela sociedade civil aqui no Brasil. São Francisco, na Califórnia, implementou e universalizou a coleta e o tratamento de resíduos orgânicos em apenas 5 anos. E o Brasil desponta no desenvolvimento de tecnologias de compostagem biológica altamente eficazes e replicáveis para o tratamento de resíduos orgânicos.

Felizmente, há diversas organizações e profissionais com alto conhecimento no tema que vem elevando o debate e que podem fornecer caminhos mais adequados e inovadores, neste processo de qualificação das metas que se seguirá nos próximos dois meses.

As possibilidade estão na mesa e a vontade de colaborar é grande. Basta apenas a gestão ter interesse e se comprometer com um tema tão importante para a cidade e para as pessoas. 

 

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