Entre os vários desafios pelos quais passa o Brasil, a necessidade de promover uma reforma da previdência está sobre a mesa. Mas reformar para quê? Para beneficiar quem? Quais são os objetivos e valores que devem nortear esta reforma?
O Brasil é um dos países com maior índice de desigualdade no mundo. Quase dois terços dos brasileiros têm renda mensal média inferior a dois salários mínimos e cerca de 45 milhões de pessoas recebem apenas um salário, ao mesmo tempo em que 5% da população se apropriam de metade de toda a renda nacional. No país, apenas seis pessoas possuem riqueza equivalente à dos 50% mais pobres da população.
No nível local, o Mapa da Desigualdade da cidade de São Paulo, elaborado pela Rede Nossa São Paulo, torna visível a situação. A capital paulista é dividida em 96 distritos com uma população média de 120 mil habitantes em cada um deles. A idade média ao morrer no distrito de Pinheiros é de 79,67 anos enquanto é de 53,85 anos no distrito Cidade Tiradentes. Uma diferença de 25 anos na mesma cidade! Mais de 4 milhões de pessoas que vivem em 36 distritos da cidade têm uma idade média ao morrer menor de 65 anos.
É claro que vários elementos contribuem para uma idade média baixa, desde a violência urbana, passando pela mortalidade infantil e pelo falho sistema de saúde. Mas com números assim, como podemos estabelecer uma idade mínima para se aposentar de 65 anos se a maioria das pessoas em situação de pobreza não terá a mínima chance de chegar até lá?
Pessoas pobres, por razões óbvias, começam a trabalhar mais cedo. Neste novo sistema, elas teriam que trabalhar por mais tempo que as pessoas mais ricas e muitas não conseguirão se aposentar. Ainda que o país esteja passando por uma crise econômica de grandes proporções, as soluções não podem estar centradas em medidas que recaiam sobre os que mais sofrem com as desigualdades do nosso país.
Vivemos uma das maiores crises políticas da nossa história recente pós ditadura militar. Nesse contexto, a proposta de uma reforma da Previdência, ainda que seja um tema importante a ser enfrentado pelo conjunto da nossa sociedade, é inoportuna tanto pela ausência de participação adequada da sociedade quanto pela falta de legitimidade da política brasileira atual.
A PEC da Previdência Social, apesar de recuos recentes do relator, permanece excessivamente pesada para os trabalhadores de baixa renda e considera pouco a desigualdade na própria contribuição previdenciária. Segundo Marcelo Medeiros, do IPEA, o 1% mais rico dos aposentados fica com a mesma fatia dos gastos com aposentadorias que os 50% mais pobres – situação que se agravará com as mudanças propostas pelo governo.
Hoje, reformas como a da Previdência perderam o contexto político. Também se descolaram da vontade popular. Segundo o Datafolha, 71% dos brasileiros são contra a reforma. Tamanha resistência, junto à gravíssima crise política atual, deveria servir de freio ao governo e ao Congresso.
Desde a Constituição de 1988, foram conquistados direitos e políticas que possibilitam o combate à pobreza e às desigualdades no nosso país. Neste momento, é fundamental que a quase esquecida agenda de redução de desigualdades seja priorizada, norteando as políticas de retomada da economia e respaldadas por um processo eleitoral onde o tema seja amplamente debatido.
Katia Maia, 54, socióloga, é diretora executiva da Oxfam Brasil.
Oded Grajew, 73, é presidente do Conselho Deliberativo da Oxfam Brasil e presidente emérito do Instituto Ethos. É idealizador do Fórum Social Mundial.