MARIANA ZYLBERKAN E GIBA BERGAMIM JR. – FOLHA DE S. PAULO
Dias atrás, quando anunciou que um produto "abençoado" feito à base de alimentos prestes a irem para o lixo seria oferecido a "pessoas que passam fome" em São Paulo, o prefeito João Doria (PSDB) não só pegou de surpresa sua própria equipe como deixou uma dúvida: quem não teria o que comer na cidade mais rica do país?
Nem o staff do tucano tem essa resposta. O argumento da gestão é que apenas uma pesquisa poderá indicar os rumos de um programa de distribuição de alimentos que inclua a farinata –o produto anunciado pelo prefeito.
O fato é que Doria errou na propaganda, já que anunciou algo sem nenhum estudo em mãos e enfrentou duras críticas por causa disso, mas acertou no diagnóstico: a realidade nos rincões de pobreza do município é de famílias inteiras que vivem à base de uma dieta pobre, repetitiva e industrializada, isso quando têm acesso a algum tipo de alimento. Há fome.
A Folha percorreu diferentes pontos da metrópole e encontrou realidades que revelam o quanto a falta de comida assombra os lares de quem vive nos extremos, onde o alimento bom não chega.
Essas pessoas não sabem o que comerão no dia seguinte, o que inclui crianças sem café da manhã e que almoçam e jantam macarrão instantâneo, e pai, mãe e filhos que passam o dia à base de arroz. Só arroz.
Elas se enquadram, segundo classificação do IBGE, na chamada insegurança alimentar grave. Estão nessa condição de instabilidade nutricional famílias sujeitas a privação de alimentos, cujo grau mais extremo é a fome.
Casos como o da família do desempregado Jeferson Oliveira, 29, que vive num minúsculo barraco com sua mulher e dois filhos, de 9 e 10 anos. Ali, na favela do Cimento, zona leste, tem almoço que "é só feijão" ou a refeição do dia todo é o macarrão instantâneo, tudo feito num fogão improvisado com pedras e álcool.
A 45 km dali, no Grajaú, zona sul, a ajuda de vizinhos ou de entidades vai permitir um pouco de arroz à família da também desempregada Ivone de Fátima, 39. Ela evita cozinhar feijão para não gastar o gás –o botijão custa R$ 80.
Jeferson e Ivone fazem parte das 50 mil famílias na cidade em situação de risco de desnutrição, segundo o Mapa da Insegurança Alimentar elaborado em 2014 pelo Ministério do Desenvolvimento Social (esses são os números oficiais mais recentes).
O estudo é baseado na situação de famílias incluídas no cadastro de programas sociais do governo federal. A pesquisa leva em consideração o índice de desnutrição de crianças menores de 5 anos que são acompanhadas pelo programa Bolsa Família.
"Numa interpretação razoavelmente segura, pode-se afirmar que insegurança alimentar grave e fome coexistem", explica Semíramis Martins Domene, professora de nutrição da Unifesp da Baixada Santista, litoral de SP.
Essa realidade é corroborada por números levantados pela Folha com base em dados do Datasus sobre mortes por desnutrição na cidade.
De 2005 a 2015, 1.750 pessoas morreram por consequências da falta de nutrientes. A maioria, 85%, são pessoas com mais de 50 anos que tiveram como causa primária do óbito a má alimentação. Apesar de não detalhar as circunstâncias dessas mortes, que podem incluir casos de patologias que causam má absorção ou dificuldade de alimentação, esses números são os mais próximos disponíveis da realidade da fome na cidade.
1.750 foi o total de mortes*
*12 mortes sem idade informada
"A desnutrição é pano de fundo para uma série de doenças infecciosas que têm uma mortalidade maior. Aumentam as chances de morrer por pneumonia ou diarreia, por exemplo", diz Maria Paula de Albuquerque, gerente clínica da associação Cren (Centro de Recuperação e Educação Nutricional).
A falta de dados que deem a dimensão de quantas pessoas passam fome no município é mais um indício da forma como o assunto é tratado pelas autoridades, segundo André Luzzi, conselheiro da ONG Rede Cidadã Contra a Fome. "Falta de informação dificulta as ações."
A responsabilidade pelo combate à fome é das três esferas de governo. A União repassa dinheiro para distribuição de renda, enquanto Estados e municípios precisam ter políticas de entrega de alimentos de qualidade.
FARINHA E PIPOCA
Doria apostou na farinata como uma das políticas para amenizar o drama da fome. O pó é feito com diversos produtos vindos de empresas alimentícias e na iminência de serem incinerados. Ele apresentou também o granulado, um subproduto da mesma farinha com cara de pipoca, mas saudável, segundo comparação feita por Rosana Perrotti, dona da empresa Plataforma Sinergia, criadora da ideia.
Ele anunciou que começaria a distribuição pelas escolas municipais, mas voltou atrás no dia seguinte.
"Difícil achar que algo que vai vencer pode ter boa qualidade. É misturar tudo o que não sabemos o que é e fazer algo que parece comida, mas não é. Isso não é necessário num país que bate recordes de produção agrícola", disse a nutricionista da Unifesp.
Franciane Lopes de Souza, nutricionista que participa do projeto sobre a farinata, afirma que a ideia é viável. Ela atua agora no balanceamento do produto do ponto de vista nutricional.
OUTRO LADO
A gestão João Doria (PSDB) diz ter uma série de ações para distribuição de alimentos in natura e promete ampliá-las. Assim, busca amenizar a polêmica em torno da farinata, que passou a ser tratada como política secundária.
"Estendemos o programa de hortas urbanas e temos uma política de apoio aos agricultores na área rural [em Parelheiros, no extremo sul]", disse a secretária municipal do Trabalho e Empreendedorismo, Aline Cardoso.
Outra medida, segundo a secretária, é um programa de combate ao desperdício, iniciado no mercado Kinjo Yamato, ao lado do Mercadão. Em dez dias, diz a prefeitura, foi arrecadada 1,2 tonelada de frutas, legumes e verduras.
A ideia é que os produtos de qualidade que restaram nas gôndolas ao final do dia sejam encaminhados a entidades, que, por sua vez, distribuirão às pessoas carentes.
A administração diz que melhorou o apoio à agricultura familiar, por meio do atendimento técnico a cem agricultores familiares e da oferta de maquinário para plantio. Também prevê o mapeamento de 150 hortas urbanas, entre públicas e privadas. Diz ainda que vai ampliar a compra de produtos orgânicos ou vindos de agricultura familiar para a merenda escolar.
Segundo a prefeitura, tudo faz parte do Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional e será discutido na câmara técnica municipal responsável, em reunião na próxima quarta-feira (1º). A Folha mostrou na semana passada que o grupo, que envolve várias secretarias, não se reúne há 11 meses.
A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social diz que são distribuídas 367.152 refeições por dia em centros de acolhida.
Já o governo Geraldo Alckmin (PSDB) afirma apostar nos 22 restaurantes populares da rede Bom Prato (que oferece refeições a R$ 1), no Programa Vivaleite e em ações de apoio a agricultores. No Bom Prato, são 38 mil refeições diárias na capital, segundo a gestão tucana.
Já o Vivaleite distribui anualmente na cidade 17 milhões de litros do produto, diz a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social. O leite é oferecido a cerca de 43 mil crianças e 54 mil idosos por mês. "Há toda uma estrutura montada para não permitir que ninguém chegue numa situação de fome", afirma o secretário Floriano Pesaro.
Ele inclui nesse processo o o programa estadual Renda Cidadã, que tem meta de atender 12.560 pessoas em 2017.
A Secretaria Estadual de Agricultura diz que investe na criação de hortas urbanas, na capacitação de pessoas para conscientização sobre alimentação saudável e em feiras de orgânicos com itens vendidos direto do produtor, mais baratos.
O Ministério do Desenvolvimento Social citou o programa de distribuição de renda Bolsa Família –com 466,6 mil famílias beneficiadas na cidade– como um dos mecanismos adotados pelo governo federal para reduzir os índices de desnutrição no país.
Além disso, o ministério elenca outras iniciativas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que transfere recursos aos municípios para reforçar a merenda, e o acompanhamento nutricional feito por estabelecimentos de saúde nas cidades.
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ENTENDA
Doria gravou vídeo no qual falou em "pessoas que têm fome" na cidade. A prefeitura sabe quais são e onde elas estão?
Não. A gestão ainda fará um mapeamento disso. Os dados mais recentes são de 2014
O que caracteriza a desnutrição?
A desnutrição corresponde a uma doença de natureza clínico-social, cujas raízes se encontram na pobreza
O que é insegurança alimentar?
Termo que avalia a percepção das famílias brasileiras sobre o acesso aos alimentos
Quais os níveis de insegurança alimentar?
Leve: detectada alguma preocupação com quantidade e qualidade dos alimentos. Moderada: restrição de alimento em termos quantitativos.Grave: integrantes da família passaram por privação de alimentos
Pessoas com acesso a alimentos podem estar desnutridas?
Sim. A obesidade e outras doenças crônicas podem estar ligadas à carência alimentar. Há chance de desnutrição mesmo com a oferta de alimentos, porém, com poucos nutrientes
Uma pessoa com oferta de apenas um tipo de alimento, como arroz, também pode ser atingida pela desnutrição?
Sim. Segundo definição da ONU, a segurança alimentar ocorre quando as pessoas têm acesso a alimentação que atende suas necessidades. Um alimento usado repetidamente não terá todos os componentes necessários
O que é considerada uma alimentação adequada?
A que prevê não só a quantidade de calorias necessárias para o dia, mas também é balanceada
A desnutrição no país e na cidade de São Paulo está erradicada?
Não. Mesmo em cidades consideradas ricas, como SP, há bolsões de pobreza em que há incidência de subnutridos
Como é possível combater esse problema?
Por meio do que se chama de uso correto de excedentes de produção da agroindústria e reaproveitamento de alimentos em condições de consumo
Matéria publicada na Folha de S. Paulo.