Aos 456 anos a cidade de São Paulo enfrenta problemas que, comparados aos de um organismo vivo, mostram condição próxima à falência múltipla de órgãos
Por Paulo Saldiva e Evangelina Vormittag – Scientific American Brasil
O caso de São Paulo não é o único entre as metrópoles mundiais, ao menos em relação aos países em desenvolvimento. Mas é grave e não pode continuar ignorado, sob pena de custos crescentes pagos com o comprometimento da vida de seus moradores. Comparadas à situação de uma velha senhora submetida a uma série de exames para revelar a qualidade da saúde urbana, a cidade de São Paulo e toda sua região metropolitana são reprovadas em um conjunto de itens vitais que já afetam o presente e devem tornar-se críticos, se não irreversíveis, no futuro imediato. Com limitações preocupantes em relação a fontes de água potável, São Paulo e seu entorno têm reduzido tratamento de esgotos, poluição atmosférica sobrecarregada por transporte individual, impermeabilidade do solo e, entre outros comprometimentos, ilhas de calor que implicam chuvas destruidoras todo verão.
O mundo passa por uma crise ambiental com raízes localizadas basicamente no excesso de consumo dos recursos naturais. E é nas cidades que se manifesta a maior demanda pela oferta de alimentos, transporte, moradia, recursos hídricos, saneamento básico e energia. No Brasil, em 2000, 81,2% da população já vivia em áreas urbanas. A previsão para 2030 é que cerca de 60% das pessoas viverão em áreas urbanas do planeta. Os impactos da complexidade do metabolismo urbano produzem efeitos dramáticos sobre diversos aspectos da saúde e sustentabilidade, tanto local como regional e mesmo em escala global. A pressão da urbanização sobre o ambiente varia de acordo com o tipo das cidades.
Metrópoles como Londres, Paris e Nova York, que tiveram crescimento gradual, puderam usufruir dos benefícios de um processo de planejamento dinâmico e da consolidação da infraestrutura, incluindo o sistema de transporte público. Em contrapartida, contrapartida, cidades que cresceram rapidamente, principalmente nos países em desenvolvimento, passaram da juventude para a decrepitude e deterioração sem tempo de amadurecer.
São Paulo é uma representante típica do segundo grupo, com crescimento veloz e desordenado, ligada a mais 38 cidades que formam sua região metropolitana, numa área de 7.944 km2. Esse processo desordenado, com frequência confundido com desenvolvimento, trouxe problemas ambientais de solução complexa e cara, que afetam negativamente a vida de 20 milhões de habitantes dessa megaconurbação.
A cidade pode ser entendida como um organismo vivo, onde os bairros seriam órgãos e os habitantes, células dessa estrutura. A analogia permite que, na análise da saúde desse organismo, seja possível imaginar a cidade de São Paulo como um corpo adoecido, afetando também seus habitantes. A descrição desse caso pode ser feita imaginando-se a cidade como uma velha senhora que terá a sua história clínica relatada por seu médico.
Paciente do sexo feminino, com 456 anos, refere que se sentia compelida a ser uma das cidades que mais cresciam no mundo. Olhava com orgulho o brotamento de chaminés fumegantes e sentia prazer ao ver lhe percorrerem as veias minúsculos veículos motorizados e gente trabalhando incessantemente. Com o passar do tempo, e principalmente nos últimos 60 anos, relata ter perdido o controle da situação, engordado em excesso, excedendo seus limites geográficos com aparecimento de áreas de extrema pobreza (loteamentos periféricos e favelas). Isso faz com que despenda enormes quantidades de recursos, redesenhando seus limites e buscando soluções para problemas físicos e psíquicos que atingiram uma escala de difícil tratamento. Queixa-se de febre (aquecimento), calafrios e intensa sudorese (eventos extremos, chuvas, inundações, ventos fortes), falta de ar (poluição), entupimento de suas artérias, que não permitem fruição do trânsito e dificuldade para eliminar urina (filtração – tratamento de água).
Comportamento Bipolar
Exame mais detalhado sugere que se trata de paciente bipolar. Em alguns momentos apresenta-se estressada, deprimida e com baixa autoestima. Em outros, eufórica. Apresenta enorme vazio no centro, principalmente à noite, associado a um sentimento de despopulação central. Confusa, reconhece dependência química de uma droga, o petróleo. Apática, demonstra dificuldade de planejamento, desesperança, desamparo e preocupação com o futuro.
A velha senhora alega ainda episódios agudos de asma e surtos de pneumonia. Já teve alguns episódios de dor precordial (dor no peito) e infarto. Alimentase compulsivamente, apresenta má digestão, sensação de empachamento, eructação e flatulência há anos. Vivencia constantemente episódios de evacuação, prejuízo do saneamento básico, grande lançamento de efluentes e esgoto nos rios e disposição de resíduos sem aproveitamento. Acredita que possa ser acometida por vermes pela facilidade com que este quadro acarreta a proliferação de vetores causadores de doenças infecciosas. Sente muita sede, apresenta fraqueza e incapacidade de aproveitar as fontes energéticas de que dispõe. Aponta ainda perdas e desperdício de água.
O exame físico demonstra ser uma paciente obesa, febril, com notável distribuição das células mais pobres na periferia. Apresenta- se extremamente dispneica, com falta de ar e notório escurecimento do ar expirado por fuligem. O ritmo dos batimentos cardíacos mostra diminuição (bradicardia). Apresenta edema generalizado (inchaço), coincidindo com chuvas (congestão arterial). Além disso, observam-se intensas áreas sem pilificação, alopecia (queda de cabelo) crescente, pois sua cobertura vegetal foi parcialmente destruída. A pele está seca, espessa e escura devido ao asfaltamento e à impermeabilização do solo. Constatase déficit de audição por excesso de ruídos.
Exames laboratoriais complementares foram realizados para auxiliar o diagnóstico da paciente. Dados epidemiológicos e científicos ilustram e elucidam o caso clínico dessa velha senhora.
Exames do ar mostram que as fontes móveis (veículos) passaram a ter, a partir da década de 80, maior participação na carga de poluentes emitidos na atmosfera que as fontes industriais e se tornaram a principal causa de poluição na região metropolitana e outros grandes centros urbanos do país. De acordo com estimativas da agência ambiental do estado de São Paulo – Cetesb –, 90% dos poluentes gasosos resultam da queima de combustíveis fósseis nos veículos automotivos (97% das emissões de CO – monóxido de carbono – e 96% de NO2 – dióxido de nitrogênio). Há registros de que tenha a maior concentração de ozônio e material particulado do país. Essa poluição do ar provoca perto de 4 mil mortes prematuras/ano. Estima-se que os níveis atuais de poluição levem a uma redução da expectativa de vida do habitante em cerca de 1,5 ano, devido a três desfechos: câncer do pulmão e vias aéreas superiores; infarto agudo do miocárdio e arritmias; e bronquite crônica e asma. Viver em São Paulo corresponde a fumar quatro cigarros diariamente em decorrência das partículas em suspensão no ar.
Confira aqui o artigo completo publicado no Scientific American Brasil.