Em parceria com sociedade civil, diversos partidos protocolam na Câmara um Projeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais para a maior cidade do país.
Por Marina Pita*, do Intervozes – Publicado no portal da Carta Capital
O futuro é hoje. Nossa vida não é igual a dos Jetsons, mas o avanços das tecnologias de informação e comunicação (TICs) já transformaram radicalmente nosso modo de vida. Muito, entretanto, está por vir, sobretudo quando falamos de cidades inteligentes.
Elas ainda são uma ideia, mas também uma ideologia, vendida a custo de bilhões de reais provenientes das cabeças de marketeiros a serviço da indústria de TICs. Para nos aproximarmos dela, é fundamental agir hoje para que as decisões que estão sendo tomadas em torno da construção dessa ideia tragam mais benefícios que riscos aos cidadãos e cidadãs.
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E um dos riscos mais evidentes deste processo é o que será feito com a infinidade de dados que passarão a ser coletados numa cidade que se propõe a ser toda conectada. Neste sentido, é urgente regular o uso desses dados – principalmente os pessoais – por gestores públicos, para que a violação de nossos direitos e os riscos de discriminação não sejam regra, e o bom uso dos dados seja disciplinado e protegido juridicamente.
Atentas a essa questão, organizações da sociedade civil como Intervozes e a Rede Nossa São Paulo, trabalhando em parceria e a partir de um texto base desenvolvido pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância Tecnologia e Sociedade (Lavits), iniciaram uma construção suprapartidária, em diálogo com vários mandatos, e protocolaram nesta sexta-feira (24), na Câmara Municipal de São Paulo, o Projeto de Lei 807/2017, o PL de Proteção de Dados Pessoais de São Paulo.
Em comum entre esses mandatos parlamentares e entidades está o entendimento de que o desenvolvimento das TICs traz oportunidades para o planejamento e melhorias das políticas públicas, a partir de informações reunidas pelos braços do governo local como escolas, postos de saúde, concessionárias operadoras do transporte público, etc. Mas que, também, é preciso garantir regras claras para o uso de dados dos munícipes para minimizar ao máximos os riscos de assédio e discriminação.
A resposta ao convite das organizações veio logo. Vereadores de partidos em posições bastante diferentes no espectro político – PSDB, PSD, PT e PSOL – compreenderam a importância deste debate, ainda mais no contexto econômico de rentabilização de dados pessoais e crise econômica nacional, que tem feito gestores olharem com apetite para os nossos dados. No caso de São Paulo, o atual prefeito João Dória chegou a ventilar a ideia de vender as informações de transporte dos municípes obtidas a partir do serviço público.
Cabe destacar que o serviço de transporte público municipal não é o Uber. Um cidadão em desacordo com os termos de privacidade e uso do bilhete único faz o que? Não dá para simplesmente optar por um serviço de transporte público alternativo. Então, para usufruir de direitos básicos como transporte, saúde e educação, o munícipe fornece seus dados pessoais ao poder público. Para que o “contrato” deste cidadão com o município tenha como premissa a não comercialização dos seus dados, mas sua proteção e uso legítimo, é que o PL 807/2017 foi apresentado.
A proposta vem para melar o processo de digitalização da cidade de São Paulo, tão carente de mais eficiência? Certamente não. Esta é uma visão bastante simplista deste debate, inclusive porque o mercado tem se mostrado suficientemente criativo e dinâmico para encontrar modelos de negócio diversos a partir das oportunidades disponíveis. Então é importante que o poder público estimule estes modelos de negócio responsáveis, de acordo com a ideia de uma sociedade justa e igualitária. Mas também é direito do cidadão a prestação de um serviço público de qualidade não norteado meramente por interesses privados.
“Assegurar a publicidade dos dados públicos e a privacidade dos dados pessoais parecem coisas óbvias, mas temos de avançar muito nestes pontos para garantir a democracia. E este projeto, que preserva as informações dos cidadãos, é um passo essencial”, avalia o vereador Police Neto (PSD), um dos coautores do PL.
Além de Neto, assinam a autoria do PL de Dados Pesoais de São Paulo os vereadores Eduardo Suplicy (PT), Juliana Cardoso (PT), Patrícia Bezerra (PSDB), Sâmia Bomfim (PSOL) e Toninho Vespoli (PSOL). Importante registrar que o gabinete do vereador Vespoli, por meio de seus assessores/as, trabalhou arduamente para que o interesse público estivesse acima de interesses imediatistas e de disputa eleitoral em torno da eleboração do texto. Para o Intervozes, o processo foi uma aula sobre as possibilidades de diálogo no Legislativo – algo que deve estar, em breve, devidamente documentado para os interessados.
“Um Projeto de Lei Municipal de Proteção de Dados Pessoais e Privacidade, fruto da iniciativa da sociedade civil organizada, é a prova de que o povo não aceitará de forma tranquila o Prefeito de São Paulo fazer lobby e negócios com nossas informações. A comercialização de dados pessoais é o petróleo do século XXI e o Legislativo tem o dever de incidir com medidas regulatórias nessa nossa economia informacional”, explica Vespoli.
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O melhor, no entanto, é que esta não é uma iniciativa da sociedade civil organizada apenas para o município de São Paulo. O texto base do PL de Dados Pessoais paulistano, criado pela Lavits e redigido pelo advogado especializado no tema Bruno Bioni, tem sido carinhosamente apelidado de PL Creative Commons de Dados Pessoais, em referência ao modelo alternativo de registro de direito autoral.
Isso porque está disponível e pode ser usado por qualquer cidadão interessado a levar o debate da privacidade e do uso justo dos dados do cidadão a seu município, acessível em dadospessoais.lavits.org.br.
Novas articulações devem surgir em capitais e interiores do Brasil para que avancemos na garantia de cidades realmente inteligentes: aquelas que protegem os cidadãos. O Intervozes, um coletivo nacional e organizado de forma horizontal pelo país, está trabalhando para isso e à disposição para auxiliar a sociedade civil neste processo.
Perguntas e respostas sobre a Lei Municipal de Dados Pessoais
a) Por que uma Lei de Proteção de Dados Municipal é importante?
De um lado, ela protege o cidadão garantindo a eles o direito à proteção de um uso inadequado dos seus dados. De outro lado, ela fornece segurança jurídica às empresas e à gestão pública no processo de digitalização da cidade, à medida em que estabelece boas práticas, obrigações e deveres por parte da administração pública.
b) Se este PL for aprovado, haverá atraso na modernização da cidade?
Não, pelo contrário. Essa lei é necessária para que haja a modernização da cidade. Nela, o gestor público encontrará segurança jurídica para utilizar os dados dos cidadãos para tornar a sua administração mais eficiente. Com isso, o gestor terá na lei um "manual de instruções" sobre como usar os dados pessoais dos cidadãos nos mais diferentes projetos e políticas públicas, de forma a garantir coordenação, uniformidade e celeridade ao processo de digitalização e conexão da cidade.
c) O município pode legislar sobre privacidade?
Sim, porque este projeto de lei trata um assunto de “interesse local”, de acordo com o artigo 30, inciso I, da Constituição Federal. O PL regula o tratamento de dados pessoais por parte da Administração Pública Municipal Direta e Indireta, traçando uma política municipal de privacidade e proteção de dados pessoais. A criação de leis locais sobre uso de dados pelas gestões públicas é uma tendência global à medida que as cidades avançam em digitalização e conexão. Em paralelo, e sem prejuízo, o Congresso Nacional também debate neste momento uma lei nacional de proteção de dados pessoais, também fundamental para o país.
d) Em que casos de coleta e tratamento de dados pessoais esta proposta de lei não se aplica?
Este PL visa disciplinar apenas a coleta e tratamento de dados pela gestão pública municipal – direta e indireta. Ou seja, não pretende regular a coleta e tratamento de dados na esfera privada ou nas esferas estaduais e federais da gestão pública.
e) Como se dará a fiscalização desta lei?
A controladoria geral do Município terá dentre as suas atribuições a de zelar pela proteção de dados pessoais. Além disso, o projeto propõe a criação de Conselho Municipal de Proteção de Dados Pessoais, para que a própria sociedade possa ser ouvida e influenciar na formulação de políticas públicas com base na utilização dos dados pessoais dos cidadãos.
*Marina Pita é jornalista, integra a Coordenação Executiva do Intervozes e é pesquisadora sobre o tema da privacidade e proteção de dados pessoais.
Artigo publicado no portal da Carta Capital.