A proposta da gestão do prefeito da capital paulista, João Doria (PSDB), para revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei de Zoneamento) foi duramente criticada na noite de ontem (27), em debate no Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB). Os especialistas concordam que a lei necessita de adequações pontuais, mas consideram que a gestão visa apenas atender às exigências do mercado imobiliário, cujas entidades representativas foram as únicas efetivamente ouvidas até agora, na elaboração da minuta do projeto de revisão.
A pesquisadora do Lincoln Institute of Land Policy Claudia Acosta destacou dois pontos da revisão: a redução de 30% a 50% no valor da Outorga Onerosa, valor cobrado pela possibilidade de construir prédios maiores, e a flexibilização dos gabaritos no miolo dos bairros, que são os tamanhos que os prédios podem alcançar. "O mercado imobiliário quer liberdade para fazer como quiser. Qualquer restrição reduz a margem de lucro. Só que a cidade não é só do mercado imobiliário", afirmou.
A verba arrecadada com a outorga tem como destino a implementação de infraestrutura urbana em regiões periféricas da cidade. O objetivo exposto pela gestão de Fernando Haddad (PT), responsável pela revisão do Plano Diretor Estratégico (2014) e da Lei de Zoneamento (2016), era "capturar" parte da valorização imobiliária que explodiu na cidade desde 2009 e revertê-la em benefício da população em geral. Cerca de 30% dos investimentos em infraestrutura estrutura da gestão Haddad utilizaram verba oriunda de outorga onerosa. A previsão é que gestão Doria vai deixar de arrecadar cerca de R$ 150 milhões por ano para favorecer o setor imobiliário.
Segundo Claudia, existe uma distorção quando a gestão Doria argumenta que o Plano Diretor Estratégico deixou a outorga muito cara é que isso estaria causando retração no mercado. "Não foi o aumento do custo da outorga, mas o ciclo de consumo. No mercado imobiliário, oferta e consumo se cruzam, não crescem juntos. Chega um momento que tem mais oferta que demanda. É o momento que estamos vivendo", explicou.
Ela avaliou que existe um erro ao comparar o custo da outorga onerosa com o Custo Unitário Básico (CUB) de construção, que é o parâmetro de valor unitário das unidades. "Outorga é 'terra criada'. Compra-se o direito de construir mais em um mesmo tamanho de terreno. Usar o CUB para calcular o impacto da outorga é dizer que o custo da terra é igual o custo de construção. É uma coisa que não se faz em São Paulo há 20 anos. Só vejo isso em cidades sem capacidade técnica ou que ainda estão iniciando a discussão sobre o tema", afirmou Claudia.
Ao refletir sobre a quem interessa a revisão do plano, a representante do Lincoln Institute disse que é falsa a afirmação de que o aumento da outorga recai sobre os consumidores finais. "A outorga pressiona para baixo. É o que os economistas chamam de residual. Ela incide sobre o proprietário da terra. Deve existir um grupo com muita terra adquirida em momento de alta do mercado que está se sentindo pressionado e quer recuperar o investimento."
Já em relação à flexibilização do gabarito no miolo dos bairros que possuem residência e comércio, chamados zonas mistas, Claudia rebateu argumentos da gestão Doria, de que os eixos de mobilidade, onde se pode construir mais, representam pouco território, apenas 6% da área edificável. Hoje, o limite, chamado de gabarito, é de 28 metros. Com isso, a gestão Doria pretende eliminar o limite de vagas de garagem nos edifícios. "Esses 6% é muito mais do que o mercado imobiliário consegue realmente aproveitar nos próximos 15 anos. O que se quer é liberdade para construir onde, como e quando se quiser", reforçou.
O ex-secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano Fernando Mello Franco, membro do Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole, concordou que há pontos passíveis de revisão, mas que seria impossível um conjunto de leis aprovadas em um amplo processo participativo sair perfeito. "É possível fazer isso por inúmeras formas: leis complementares, decretos, portarias. Mas o que a prefeitura quer fazer é mudar a essência do projeto. Precisamos entender quais são os interesses", afirmou.
Franco atacou diretamente o argumento de que a outorga onerosa aumenta o custo da produção imobiliária. "No boom imobiliário, conforme aumentava a demanda, mais o valor de venda e de construção se distanciavam. O valor de venda seguia a demanda e o custo seguia a inflação. Não há impacto nenhum entre outorga e valor final de venda. É um argumento falacioso", criticou.
Franco destacou que o Plano Diretor Estratégico foi debatido por meses pela sociedade, depois pela Câmara Municipal. A proposta visa ao desenvolvimento controlado da capital paulista por 15 anos. "Por quatro anos à frente da secretaria eu ouvi que o que estávamos fazendo ia expulsar o mercado imobiliário para a região metropolitana. Mas os dados do Secovi – sindicato dos empresários da construção civil – indicam que, em 2017, aumentou em 48% o número de novos empreendimentos na cidade e caiu na região metropolitana", relatou.
Segundo a organização do evento, a secretária Municipal de Licenciamento e Urbanismo, Heloísa Proença, foi convidada, tinha confirmado presença, mas depois declinou e não enviou representante. O Secovi e o Sinduscon – sindicatos dos empresários do mercado imobiliário e da construção civil – rejeitaram o convite para o debate.
No último dia 22, um grupo de 156 organizações encaminhou uma carta ao prefeito pedindo que ele retire a proposta de revisão da Lei de Zoneamento. Doria – que respondeu à reportagem da RBA (leia abaixo) – divulgou uma minuta do texto, que deve ser enviado à Câmara Municipal em março. Para as entidades, a proposta “atende a interesses privados, de um setor específico da cidade (mercado imobiliário), em detrimento ao interesse público”. Elas apontam riscos como queda de arrecadação, piora do trânsito em regiões já saturadas, extinção de bairros residenciais e mais exclusão da população de baixa renda da região central.
A prefeitura colocou em consulta pública uma minuta do projeto de revisão. Segundo a gestão Doria, “as correções e ajustes na LPUOS são necessários para garantir uma melhor aplicação da lei”. Essa decisão foi tomada no âmbito da Secretaria de Urbanismo e Licenciamento, onde o presidente do Conselho Consultivo do Secovi – sindicato dos empresários do mercado imobiliário –, Claudio Bernardes, preside o Conselho de Gestão da pasta, responsável por orientar a política da área. A prefeitura já havia concordado com a proposta de revisão após um evento que teve a participação de Doria no Secovi.
As organizações reivindicam que a prefeitura retire do projeto qualquer ponto que desvirtue o Plano Diretor aprovado em 2013, bem como apresente os estudos que motivaram a revisão e estudos técnicos com suas consequências. Pedem ainda que a gestão Doria esclareça quais propostas são meros ajustes de redação e de aplicabilidade da lei vigente daquelas que impactam o zoneamento e o Plano Diretor, e que seja garantido um processo participativo com audiências públicas nas prefeituras regionais, audiências temáticas e reuniões com os diferentes segmentos da sociedade civil.
As mudanças propostas pela gestão Doria também retiram a obrigação de manter famílias de baixa renda em Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) do tipo 3, que são áreas centrais com baixa densidade habitacional. Também reduz a obrigação de cumprir as cotas de solidariedade e ambiental, que são partes do empreendimento destinados a população de baixa renda e a manutenção de áreas verdes em construções de grande impacto na cidade, como shoppings e condomínios.
A resposta da gestão Doria à carta assinada pelas 156 organizações que pediram que a retirada da proposta de revisão da Lei de Zoneamento:
"A Prefeitura esclarece que as críticas demonstram que as entidades desconhecem a proposta em discussão. A possibilidade de revogação do gabarito só será admitida sob condições como largura de via, distância das zonas residenciais e alargamento de calçadas e apenas nas zonas mistas e de centralidade, que correspondem a 14% do território. O potencial construtivo máximo passível de ser edificado permanece sendo o de 2,0 vezes a área do terreno, conforme estabelece o Plano Diretor Estratégico.
Cabe destacar que as propostas de ajustes pretendidos estão disponíveis no site Gestão Urbana desde 15 de dezembro de 2017, assim como a Minuta Participativa que tem como objetivo receber contribuições dos munícipes, que, após todo o processo de participação pública, serão analisadas antes do envio do PL para a Câmara. Os ajustes também foram debatidos nas comissões técnicas competentes, mistas do Poder Público com a sociedade civil, entidades de classe, associações e movimentos, bem como estão sendo discutidas em audiências publicas durante este mês de fevereiro."
Matéria originalmente publicada no portal da Rede Brasil Atual