Por que a revisão da Lei de Zoneamento beneficia o setor imobiliário?

Proposta prevê descontos de até 50% a empreendedores e flexibiliza regras de construção pela cidade

Por Ana Luiza Basilio — Carta Capital

Na esteira dos projetos que devem seguir para aprovação na Câmara Municipal de São Paulo ainda no primeiro semestre do ano está a revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS), a Lei de Zoneamento, aprovada em 2016. Mesmo após encerrar um ciclo de cinco audiências públicas em fevereiro e dispor de minuta participativa para considerações no site da Prefeitura, a proposta do prefeito João Doria (PSDB) segue desagradando parte da população e especialistas que pensam a dinâmica da cidade. 

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) negou o pedido de suspensão dos debates sobre as mudanças que a Prefeitura da capital pretende fazer na Lei de Zoneamento. A Promotoria de Habitação de Urbanismo havia feito o pedido contra a Prefeitura e da Câmara Municipal pelas mudanças propostas pelo prefeito João Doria (PSDB).

A ação pedia à Justiça que determinasse que Prefeitura e Câmara suspendessem o processo de encaminhamento, discussão e debate acerca da minuta. As críticas que rondam a proposta de revisão, de forma geral, questionam o pouco tempo hábil dado entre a implementação da Lei, que tem validade até 2030, e o anúncio de sua revisão, além dos pontos de alteração, considerados estruturais e pensados para beneficiar somente o setor imobiliário

Um ponto central, na visão do gestor de projetos da Rede Nossa São Paulo, Américo Sampaio, é a mudança proposta na Outorga Onerosa do Direito de Construir, concessão emitida pelo município para que o proprietário de um imóvel edifique acima do limite estabelecido mediante uma contrapartida financeira.

Na atual revisão está previsto um desconto de 30% aos empreendedores, que possibilita que paguem menos pelos metros quadrados que precisam para suas construções, o que prejudica a redistribuição de renda na cidade.

“A outorga onerosa captura dinheiro dos setores abonados da cidade, no caso o imobiliário, e o realoca no Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb), que tem por princípio direcioná-lo às minorias urbanas, às periferias, e prever ações de melhorias de infraestrutura, intervenções urbanísticas, construção de equipamentos públicos”, explica Sampaio. Assim, a lógica não é a de penalizar o setor construtivo, mas a de reduzir as desigualdades na cidade. 

A professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Paulo, Paula Santoro, também coordenadora do LabCidade, Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade, compartilha a preocupação e acrescenta outras alterações previstas para a dinâmica de outorga onerosa. “Há também uma redução do valor da outorga de até 20% para incentivar a construção de “edifícios sustentáveis” ou “edifícios conceitos”. Com isso, os descontos podem chegar a 50% do valor que deveria ser pago pelo setor imobiliário para ocupar o permitido pelo zoneamento em vigor”.

No texto “São Paulo na Black Fryday: até 50% de desconto para o setor imobiliário", publicado no site Observa SP, Santoro coloca que, de acordo com dados do sistema municipal de monitoramento do Plano Diretor de 2017, o Fundurb arrecadou em média, nos últimos anos, aproximadamente 300 milhões de reais ao ano.

“Isso significa que, com estes descontos, caso o comportamento do mercado se mantenha, a Prefeitura renunciará a 150 milhões de reais por ano e, se considerarmos o prazo de vigência da lei (mais 15 anos), a soma pode chegar a valores próximos a 2,2 bilhões de reais”, explicita a especialista na publicação. 

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Por meio de nota no site da Prefeitura, a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL), responsável por promover as audiências públicas sobre as mudanças na Lei de Zoneamento, explica que o desconto de 30% da outorga onerosa pelo direito de construir é temporário e se recomporá de acordo com a recuperação econômica do país.

Os especialistas cobram estudos técnicos que validem a necessidade da revisão e descartam as justificativas utilizadas para endossar o projeto. “A Prefeitura alega que houve queda na arrecadação da outorga desde que a Lei original aumentou a cobrança, mas o que temos é reflexo da crise econômica brasileira e seu impacto direto no setor da construção civil. Com o desemprego em alta, as pessoas param de comprar”, observa Sampaio.

Santoro também refuta a tese de que o desconto sobre a cobrança é necessário para recuperar o setor imobiliário e gerar empregos na cidade. “Vimos nos últimos meses que o mercado está se recuperando, eles não estão em crise, só não estão em franco crescimento”, avalia. “E isso geraria emprego? Não há dados que comprovem essa relação ou sequer que esses descontos chegariam aos consumidores. Então a gente amplia a rentabilidade imobiliária sem uma contrapartida de acesso a esses imóveis”, emenda a especialista.

Sampaio e Santoro ainda pontuam outras alterações presentes na atual minuta de revisão e que  entendem ir na contramão das diretrizes de uso e ocupação da cidade.

Uma delas é a diminuição do porcentual de construção de habitações de interesse social nas Zeis 3, zonas especiais de interesse social localizadas nas áreas centrais da cidade. A atual minuta diminui o porcentual de 60% para 50%. “Isso é muito ameaçador, porque o que pode alterar a forma urbana das pessoas morarem na periferia e trabalhar no centro é ofertar moradias nessas áreas”, atesta Santoro. “Deslocamentos longos e demorados são iguais a ônibus e trens lotados, além de carros no congestionamento. Ter moradia no centro melhora a vida de qualquer cidadão”, defende.

A professora também entende que a proposta vai desestimular que mais pessoas morem nos chamados eixos de estruturação da transformação urbana, regiões ao lado de eixos de transporte público coletivo de massa, como ônibus, metrôs e trens.

Nessas áreas, o PDE orientava para que os empreendimentos tivessem uma vaga de garagem, de forma a incentivar o uso do transporte público, e também incentivava a construção de apartamentos menores prevendo sua aquisição por famílias de baixa renda. As duas diretrizes também são flexibilizadas na revisão. 

A flexibilização para construir nos miolos de bairro também está entre as mudanças pretendidas. Para Américo Sampaio, é preciso considerar os impactos de mobilidade e clima em cada região, para que os moradores não tenham suas vidas impactadas em prol do rendimento das construtoras.

Em resumo, há um entendimento de que a proposta de revisão mantém a lógica de ocupação da cidade, indo na contramão dos esforços para que se torne mais humana, sustentável e justa. A expectativa entre os especialistas é que a proposta não seja aprovada justamente porque as alterações tornam a Lei de Zoneamento incompatível com o PDE, hierarquicamente superior às outras leis, de acordo com entendimento do STF.

Matéria publicada no portal da Carta Capital.

 

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