Despejo em cursos de água afeta quase metade da população urbana no Brasil
Thiago Amâncio – Folha de S. Paulo
Beber água do Tietê no começo dos anos 2000. Ver o trecho do rio que corta a capital paulista cheio de peixes em 2010. Universalizar o saneamento da região metropolitana de São Paulo até 2019.
Promessas feitas nos últimos 26 anos, mas que qualquer um que passa pela cidade mais rica do país –e sente o forte cheiro na marginal Tietê– percebe como estão longe de se realizar.
O problema tão conhecido dos paulistanos, no entanto, não é exclusividade de São Paulo. A poluição das águas é comum em capitais populosas, como Rio, Recife e Porto Alegre, que lutam para limpar a sujeita de suas águas.
Quase metade (45%) da população urbana no país não tem seu esgoto tratado e despeja seus resíduos nos rios. O saneamento precário é tido como o principal motivo para a poluição das águas do Brasil, que tem 13% da água doce superficial do mundo.
Em curso desde 1992, as tentativas de despoluição do Tietê já consumiram US$ 2,7 bilhões (R$ 8,8 bilhões) —não corrigidos pela inflação— segundo a Sabesp, empresa de água e saneamento estadual.
O projeto contempla a construção de estações de tratamento e redes coletoras de esgoto. Agora, 26 anos depois, começa a captação de recursos para a quarta fase, que tem como meta universalizar o saneamento básico.
Enquanto sucessivos governos não cumpriram as promessas, o rio continua morto no entorno da capital por cerca de 130 km, entre Itaquaquecetuba (na Grande SP, rio acima) e Cabreúva (a 74 km da capital, rio abaixo), segundo monitoramento da ONG SOS Mata Atlântica.
Parece um avanço se considerado que no início do programa o rio tinha uma mancha de poluição de 530 km. Mas os atuais 130 km são quase o dobro da mancha em 2014, de 71 km, entre Guarulhos e Pirapora do Bom Jesus, na região metropolitana de SP.
Com a crise hídrica que atingiu o estado, a receita da Sabesp despencou (no segundo semestre de 2015, prejuízo de R$ 580 milhões). Caiu também a verba para a despoluição do Tietê, de R$ 516 milhões em 2014 para R$ 342 milhões em 2016. A companhia não informou quanto foi investido em 2017.
“Tem um ditado que diz que cachorro de muito dono morre de fome. Rio de muito dono também, porque não respeita limite municipal, e em regiões metropolitanas um município não fala com o outro. Isso a gente vê muito em São Paulo. Se a Prefeitura de Guarulhos e o Governo de SP são de partidos diferentes, não tem diálogo”, diz Malu Ribeiro, da SOS Mata Atlântica.
As cifras milionárias podem ser colocadas em perspectiva. “Todo o investimento para universalizar o saneamento, na ordem de R$ 8 bi por ano, é a mesma quantidade que se perde no vazamento de água potável nas tubulações”, afirma Samuel Barrêto, da ONG The Nature Conservacy.
A Sabesp diz que “é essencial” que ações sejam tomadas em todas as esferas para o sucesso do projeto: que municípios não atendidos também tratem seus esgotos, que ocupações irregulares sejam urbanizadas e que a população não jogue lixo na água.
A empresa lembra que rios no interior do estado como o Sorocaba, Lavapés e Jundiaí foram limpos e voltaram a ter pesca e a serem usados para abastecimento público.
O Tietê é um rio de classe 4, último nos níveis de qualidade da água, que não pode ser usado para abastecimento humano independentemente do tipo de tratamento de água a que seja submetido.
O Brasil tem 83 mil km de cursos d’água nessa classificação, segundo a ANA (Agência Nacional de Águas).
GUANABARA
Outra novela se desenrola no Rio de Janeiro. O Programa de Despoluição da Baía do Guanabara começou em 1994 e durou até 2006, ao custo de US$ 760 milhões (R$ 2,5 bi).
“Houve antes de tudo um erro de comunicação, porque com esse nome criou-se uma expectativa de que a baía estaria limpa. Mas não havia nem tempo nem dinheiro para isso”, explica o presidente do Instituto Baía de Guanabara, Adauri Souza.”
O programa criou estações de tratamento, mas não havia tubulações suficientes para levar o esgoto a elas.
Veio, em 2012, um novo programa: Programa de Saneamento Ambiental dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara, com custo de mais US$ 650 milhões.
Com a crise econômica, projetos foram interrompidos. A rede coletora da Pavuna, por exemplo, que beneficiaria 225 mil pessoas, teve a licitação revogada em março passado, depois que o governo federal estabeleceu um corte de recursos de 54%.
A construção da estação de Alcântara, orçada em R$ 355 milhões, foi suspensa com 30% das obras concluídas. O mesmo ocorreu com o coletor Cidade Nova, retomado em novembro e hoje com 57% das obras prontas. “A gente olha para o espelho d’água da baía como um espelho que reflete o que não foi feito. A sociedade como um todo está em cima do esgoto. Quando há enchente, é o esgoto que transborda”, diz Souza.
A Secretaria Estadual do Ambiente do RJ credita os atrasos à crise financeira do estado e à “morosidade nos processos licitatórios”.
A Baía de Guanabara tem ocupação mais intensa que o Tietê, com portos, estaleiros, refinaria e séculos de ocupação desordenada. Estima-se que 50 dos 55 rios que escoam em sua direção estejam comprometidos pelo esgoto.
TRATAMENTO
Para a metade da população brasileira que tem acesso a tratamento de esgoto, não quer dizer que o problema esteja resolvido.
Resolução do Conama estabelece que o tratamento deve remover 60% da carga orgânica do esgoto, mas só 769 dos 5.570 municípios do país consegue o feito.
Não é um problema de cidades pequenas: só 31 dos 100 maiores municípios do país alcança o resultado satisfatório. Em 3.900 cidades, esses níveis de remoção mal chegam a 30%, segundo dados do Atlas Esgotos, da ANA.
“Falta uma política pública séria, de Estado e não de governo, que pense a longo prazo, porque com ações pontuais nenhum problema é resolvido”, diz o professor da Universidade de Pernambuco, Clemente Coelho Jr., que reclama da falta de investimento na limpeza dos rios Capibaribe e Beberibe.
A Compesa, companhia de saneamento de PE, cita o programa Cidade Saneada, que, segundo a companhia,quadruplicou o tratamento de esgoto na região metropolitana e que almeja universalizar o saneamento da região nos próximos anos, com investimentos de R$ 6,7 bilhões.
No Rio Grande do Sul, o mesmo problema. No lago Guaíba, que banha Porto Alegre, deságuam alguns dos rios mais poluídos do Estado, como o Gravataí e o dos Sinos.
“De 1990 a 2010, houve uma piora constante de qualidade da água. De 2010 em diante, com ações de saneamento, uma estagnação ou ligeira melhora. Existe uma discrepância na definição dos usos da água. Utiliza-se muita água nas cabeceiras dos rios para irrigar lavras de arroz, o que prejudica a diluição do esgoto e pode inviabilizar a água para o abastecimento público”, diz o professor da UFRGS Dieter Wartchow, ex-presidente da Corsan, companhia gaúcha de saneamento.
O estado é o 17º do país em tratamento de coleta de esgoto, com 29,7% do esgoto coletado, e 80% deste esgoto tratado. O atual presidente, Flávio Presser, cita investimentos de R$ 10 bilhões para universalizar o saneamento do estado nas próximas décadas.
“Com parcerias público-privadas e ampliação da nossa capacidade de investimento, vamos economizar R$ 5 bilhões do que foi previsto inicialmente e resolver o problema do saneamento”.
Matéria publicada na Folha de S. Paulo.