No atual ritmo, será preciso mais de 80 anos para atingir a igualdade em renda
Angela Pinho – Folha de S. Paulo
Mulher, negra, estudou, foi à faculdade, tem um bom emprego em uma multinacional e, por seu esforço e talento, é reconhecida na carreira e fora dela. As informações contam a trajetória de Lisiane Lemos, 28, mas não a história toda. É ela mesma quem faz a ressalva: “Não me tome como regra. Tive muitas oportunidades, sou uma exceção”.
De quando Lisiane era criança até ela virar especialista em soluções da Microsoft e aparecer na revista Forbes, as mulheres negras no Brasil tiveram considerável avanço em indicadores sociais, principalmente em educação.
A igualdade, porém, ainda está longe nas universidades, no mercado de trabalho e na política. Para ficar em um exemplo, a renda média de uma mulher negra é 42% da de um homem branco. No ritmo dos últimos 25 anos, será preciso mais de 80 para que sejam equivalentes.
As discrepâncias ganham destaque no momento em que o Geledés —Instituto da Mulher Negra, marco do debate sobre gênero e cor, completa 30 anos. A entidade surgiu a partir da identificação de uma lacuna, afirma sua presidente, Maria Sylvia Aparecida de Oliveira.
“Nem o movimento negro nem o feminismo majoritariamente branco tinham respostas para as violações de direitos das mulheres negras”, diz. “Apesar dos avanços nos últimos anos, elas são ainda sub-representadas na esfera pública e na privada.”
AVANÇOS
A educação concentra grande parte dos avanços, mostra uma comparação entre um conjunto de indicadores de 1992 e de 2016 do IBGE.
Os mais recentes integram o relatório de Estatísticas de Gênero recém-divulgado pelo instituto e feito a partir da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) Contínua, com entrevistas mensais. Os mais antigos foram tabulados pelo instituto a pedido da Folha a partir da Pnad que, à época, ainda era anual.
Os dois levantamentos consideram negras mulheres autodeclaradas pretas e pardas. A diferença de periodicidade pode produzir alguma variação estatística, mas eles revelam tendências claras.
As mais positivas estão entre as crianças. Em 1992, só 77% das meninas negras em idade de ensino fundamental estavam matriculadas nessa etapa. Quase 25 anos depois, isso acontece com praticamente todas (97%).
O índice de analfabetismo, embora ainda tenha espaço para melhorar, caiu de 26% para 9% entre elas (faixa de 15 anos ou mais), pouco mais que a média nacional.
Quando se chega ao nível universitário, no entanto, a desigualdade se mostra mais persistente.
A taxa de conclusão do ensino superior das mulheres negras, embora tenha melhorado muito (e mais do que a de homens negros), ainda era de 15% em 2016, apenas pouco maior do que a das brancas um quarto de século antes (as brancas alcançaram 32% em 2016). O indicador considera a faixa de 27 a 30 anos.
Moradora da periferia de São Paulo, Leticia Gabrielle Silva, 22, conta que foi na faculdade que descobriu a sua negritude, em salas de aula nas quais podia contar nos dedos colegas da mesma cor.
Estudante de uma instituição particular, com bolsa da organização Educafro, ela diz que percebeu, por exemplo, como no ensino médio o negro era quase sempre retratado como escravo. A constatação foi importante para decidir sua atuação profissional —quer atuar no terceiro setor, em ações por diversidade.
“Eu sei que perco oportunidades por ser negra e por ser mulher”, diz. “Mas, assim como existe o negro escravo, sei que tem o negro que chega lá.”
MARCHA LENTA
“Chegar lá” é especialmente difícil para mulheres negras na política e no mundo corporativo, mostram dados de outras fontes.
Representantes como a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), morta há um mês, são só 5% do total de candidatos eleitos para as Câmaras Municipais em 2016, segundo o Tribunal Superior Eleitoral. Elas têm só 3% das prefeituras. As brancas também são consideravelmente sub-representadas, com só 8% dos dois cargos.
Se a política ainda é majoritariamente masculina, o topo do universo corporativo é predominantemente branco.
Segundo pesquisa do Instituto Ethos de 2016, mulheres negras ocupavam naquele ano apenas 0,4% do quadro de executivos das maiores empresas do país.
Para Lisiane, mudanças mais significativas no perfil das lideranças do setor privado devem aparecer em dez a 15 anos. Segundo ela, porém, já é possível notar avanços, e o principal é que poucas vezes se falou tanto no assunto.
Empresas de tecnologia como a dela têm criado comitês de funcionários negros e políticas para promover mais diversidade, e há programas em outros setores, como o de bancos de investimentos.
“É preciso trazer pessoas que nunca se imaginaram no mundo corporativo, jovens que sonhem, como eu, que podem ocupar a cadeira da presidência da empresa e saibam que pessoas negras e não negras podem ajudá-los, como me ajudaram”, diz Lisiane.
Matéria publicada na Folha de S. Paulo.