Cidade tem a oportunidade de avançar com a distribuição de recursos de investimento a partir de critérios de vulnerabilidade das regiões
Sabe aquelas coisas que são uma denúncia da nossa condição, da nossa incapacidade de solucionar problemas que foram criados por nós mesmo? Pois o Mapa da Desigualdade da cidade de São Paulo é isso, revela dados e dá visibilidade a uma realidade que, muitas vezes, nos escapa. Mas ele também pode ser visto por outra chave: a que mostra e localiza os problemas e, portanto, como um orientador para que possamos atuar e transformar esta situação.
A desigualdade é uma marca de nossa sociedade há muito tempo, mas não é natural e não deve ser banalizada. É produzida por nós graças a um modelo concentrador de riqueza que tem como consequência a desigualdade.
Há um projeto muito consistente de concentração de renda, liderado por quem detém o poder econômico e que se apropria da política para defender seus interesses. O Brasil é um país-referência deste modelo ao conseguir a proeza de ser, ao mesmo tempo, uma das dez maiores economias do mundo e um dos dez países mais desiguais, superado somente por África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro Africana, Lesoto e Moçambique. Colocação que não deixa dúvidas sobre nossa incapacidade de distribuir riqueza.
A cidade mais rica do Brasil não poderia ficar atrás e infelizmente representa seu país com sua capacidade de produzir desigualdade. O Mapa da Desigualdade da cidade de São Paulo, lançado pela Rede Nossa São Paulo na semana passada, revela a dimensão do problema na cidade e, ao mesmo tempo em que gera indignação, aponta caminhos para enfrentá-lo. São Paulo sinaliza o que deve ocorrer em boa parte das cidades brasileiras, sujeitas às mesmas condições estruturais.
Vendo a cidade de cima, os distritos ricos do centro expandido são os que têm a melhor infraestrutura e, quanto mais avançamos para os extremos da cidade, mais vulneráveis se tornam. O Mapa mostra que a maioria da população mora nos distritos mais pobres e periféricos, onde é mais difícil o acesso a serviços de saúde e educação de qualidade, onde a habitação e infraestrutura são precárias, onde a renda é mais baixa, a violência é maior e o acesso aos transportes de massa mais escasso.
Mostra ainda que nestes distritos o tempo de espera para uma consulta na atenção básica chega a quase um mês (53 dias), e, para uma vaga em creche, a inacreditáveis 158 dias. Nesses distritos, a violência contra a mulher aumentou 50% nos últimos quatro anos e o acesso à internet é precário, inviabilizando a educação e saúde remotas e as oportunidades de trabalho digital. Na pandemia, a morte nos bairros mais vulneráveis foi muito maior do que nos distritos ricos, o que configurou uma nova comorbidade: o local de moradia.
O Mapa da Desigualdade pode ser, simultaneamente, o mapa para um projeto de redução da desigualdade, já que aponta quais são e onde se localizam os problemas. Mas se há material em abundância para enfrentar a desigualdade, observa-se escassez de vontade política. Nestes dez anos que elaboramos o Mapa podemos dizer, sem medo de errar, que os avanços são irrisórios na grande maioria dos temas. Neste período o orçamento da cidade duplicou, mas a desigualdade em muitos temas também aumentou.
São Paulo tem a oportunidade de avançar com a distribuição de recursos de investimento a partir de critérios de vulnerabilidade das regiões, conforme indica o Plano Plurianual recentemente apresentado pelo Executivo à Câmara Municipal. E não pode colocar em risco essa oportunidade ao aumentar impostos para a população da periferia em um momento tão delicado como o atual, como prevê o recente projeto de lei sobre o IPTU, também enviado à mesma Casa.
Sabemos criar riqueza, mas não sabemos distribuí-la. Até quando seguiremos nessa balada? Difícil saber. O que não é difícil prever é que a desigualdade sendo a origem de tantos problemas fará com que nossa sociedade siga pobre, violenta e sem alternativas para a população.
Um projeto para a redução das desigualdades deveria contemplar a geração de oportunidades de trabalho e renda para a população, a melhoria do acesso a serviços de educação e saúde de qualidade, a melhoria das condições de habitação e infraestrutura, a redução da violência especialmente contra mulheres, população negra e jovem, e a descentralização de serviços e oportunidades.
Um dos desafios da democracia no Brasil é proporcionar melhor qualidade de vida para a maioria da população. Enquanto isso não acontece estaremos sujeitos a oportunistas e aventureiros, defendendo teses e soluções autoritárias, aproveitando-se da carência e da fragilidade das pessoas. Neste sentido, reduzir a desigualdade é também defender a democracia.
Jorge Abrahão
Coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis.
*Conteúdo publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo.