Por Jorge Abrahão, coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis | Foto: Domingo Alvares – Unsplash
A história das relações tem seguido um caminho que mais nos afasta do que nos une
O que ainda restava da minha visão iluminista está fazendo água. A ideia de que estamos inexoravelmente “evoluindo” vem sendo questionada há muito tempo, mas confesso que ainda alimentava alguma ilusão. Meu erro foi o de elevar a tecnologia a um grau de importância que ela não merece ter. Não se trata de avaliar o “custo-benefício”, é coisa mais profunda do que contabilidades possam alcançar. Refiro-me a questões inacessíveis aos algoritmos, que dialogam com nossos afetos e subjetividades e que, vamos combinar, é o que interessa na vida: o que não está aparente, mas que nos toca em profundidade. E, nesse sentido, o que é mais importante nesta vida do que a qualidade das relações que somos capazes de construir?
Não é novidade que somos seres gregários, que necessitamos uns dos outros e que essa característica nos fez chegar ao topo da cadeia alimentar em muito pouco tempo; tampouco que gerou uma arrogância que está nos cegando em relação aos riscos que corremos como espécie. O que tem nos passado despercebido é que, na medida em que reduzimos a qualidade das relações, colocamos em risco nossa própria existência. Estamos perdendo qualidade, iludidos com a quantidade de relações e a brevidade do tempo a elas dedicado. É só retrocedermos um pouco no tempo.
Muitos devem se lembrar que visitávamos parentes e amigos sem aviso prévio. A surpresa era parte do processo, da liberação de adrenalina que estimulava as confidências, o olho no olho, a troca de afetos. A combinação do gesto da procura com a atenção e o tempo dedicados era capaz de desatar nós da existência e quase decifrar o universo.
Pouco tempo depois caiu em desuso a visita surpresa e passamos a pedir autorização para visitar. Era como se necessitássemos de um visto em um passaporte fraterno que autorizasse o encontro. Perdemos então um pouco do brilho, embora continuássemos nos vendo, nos tocando e alimentando nossa memória de pele: coisas intangíveis.
O próximo passo foi quando abandonamos o encontro e adotamos a conversa por telefone. Na base da voz tentamos substituir o encontro presencial e, iludidos com pobres equações que relacionavam economia de tempo de deslocamento com maior produtividade, acatamos a filosofia de botequim: “tempo é dinheiro, ganhe dinheiro não perdendo tempo”. Nem dinheiro nem tempo ganhamos e recorremos cada vez mais a psicotrópicos na busca de preencher o vazio, o grande sertão que nos habita, na incansável busca por uma vereda que nos alivie.
Logo a seguir passamos a perguntar, por mensagens, se poderíamos ligar: pode falar? Chegava o tempo da necessidade da autorização para o telefonema. Aos poucos as conversas vão rareando e são substituídas por mensagens. Nem mais a surpresa do telefonema é permitida: o bina anuncia quem liga e agora a mensagem busca o agendamento da fala.
Não demora muito e as mensagens passam a encurtar, limitando-se a certo número de caracteres. Convenciona-se um limite suportável de caracteres e o twitter dá o tom ao assumir um número mágico: 140. Transmita tudo o que quiser, sintetize o que pensa, resuma seus sentimentos em 140 caracteres.
Ao mesmo tempo, as mensagens por áudio ganham força sob o argumento da praticidade e da economia de tempo. E deixamos de exercitar a escrita, processo que exige reflexão sobre conteúdo, forma e modo de expressar o que sentimos. E passamos a escutar as mensagens em velocidade duplicada – afinal (adivinhe), tempo é dinheiro.
O certo é que, de um jeito ou de outro, conformados em tentar transmitir o que pensamos através das mensagens, escrevemos subordinados a estes códigos que nos limitam. Foi então que, depois de um esforço danado para tentar resumir o que eu sentia e o dilema por que eu passava em um texto um pouco mais longo do que as “normas”” permitem, recebi como resposta um ❤️. Foi quando chorei. Porque no fundo eu queria ter recebido um olhar solidário, um abraço apertado, uma voz que me consolasse, ou uma mensagem explícita de apoio ou carinho. Mas recebi um coraçãozinho, bonitinho, mas solitário, mudo, silencioso, incapaz de dar conta da dimensão dos sentimentos envolvidos.
A história das relações tem seguido um caminho estranho, que mais nos afasta do que nos une, e sua trajetória tem enorme impacto em nosso bem estar. Sem perceber, ao simplificar estamos complicando a vida, nos enredando em questões que não alcançamos no curto prazo, mas que nos afetarão logo ali na frente. A falta de disposição para leitura e escrita reduz repertório, capacidade de reflexão e crítica, abrindo caminho para a desinformação que muito tem impactado nossas vidas.
E de tecnologia em tecnologia vamos nos iludindo com nossa capacidade de criar e de inovar, sem perceber que estamos sendo tragados pela armadilha do tempo e que as tecnologias que lustram nosso ego são as mesmas que estão reduzindo o que temos de mais caro e raro: nossa capacidade de compreender o outro através do encontro, da troca, do olhar, da escuta, do cheiro e do toque.