Por Jorge Abrahão, coordenador-geral do Instituto Cidades Sustentáveis | Foto: Rovena Rosa (Agência Brasil), via Fotos Públicas
O encontro casual na serra do mar entre correntes úmidas e quentes da Amazônia e uma frente fria do sul do continente despejou em um curto período de tempo a enormidade de 600 mm de água em forma de chuva (o equivalente a 600 litros por metro quadrado) em algumas cidades do litoral norte de São Paulo. As consequências foram trágicas, sobretudo em vidas perdidas e sofrimento, mas também materialmente. Eventos climáticos extremos se repetem há anos, aqui e ali, cada vez mais intensos, mas somos incapazes de aprender com eles, de fazer a relação causa-efeito, focados que estamos em nossas vidas individuais, na sobrevivência imediata, no consumismo e nas lutas de poder. O modelo se impõe e a ordem é produzir e consumir: o resto, a gente vê depois.
Ainda chamamos esses eventos de “desastres naturais”, como se fossem uma fatalidade inevitável, como se não tivéssemos nada a ver com isso e a grande responsável fosse exclusivamente a natureza. E assim lavamos as mãos e continuamos nos enganando e nos iludindo, achando que a solução não depende de nós. Preferimos fingir que tudo é natural e, desta forma, encobrir nossa responsabilidade na escolha de um modelo de desenvolvimento predador, que consome recursos naturais sem limites e que recebe respostas cada vez mais contundentes da própria natureza, que não sabemos interpretar. Enquanto isso, os que têm poder político e econômico – e são os maiores responsáveis pelo aumento desses eventos climáticos extremos – buscam lugares protegidos nos seus países e no mundo, na ilusão de que poderão escapar incólumes. Poderão até ganhar um tempinho, mas não mais do que isso. Seria melhor enfrentar de frente o problema: Freud explica o processo de negação.
A falta de consciência da maioria dos governos, empresas e sociedade em relação às mudanças climáticas e seus impactos faz com que tragédias como a ocorrida neste final de semana se repitam com mais intensidade e velocidade. Há décadas os dados evidenciam que os eventos climáticos extremos vêm aumentando, e a reação, nas várias esferas de governo nacional e internacionalmente, não está à altura da gravidade do problema.
As emissões de gases de efeito estufa (CO2) batem recorde ano a ano, em que pese as metas do Acordo de Paris de 2015, que obteve o compromisso de redução de emissões de 193 países do mundo. Mas a nossa incapacidade de ações coletivas globais foi comprovada na distribuição de vacinas durante a pandemia, quando se observou que, enquanto alguns poucos países vacinavam a quarta dose, a maioria do mundo não aplicava a primeira. Enquanto os interesses individuais de países e grandes setores econômicos estiverem à frente dos interesses coletivos, seguiremos vivendo tragédias, lamentando mortes, comovendo-nos, solidarizando-nos, chorando, mas sem mudanças estruturantes que previnam sua repetição. Esses eventos climáticos violentos têm relação direta com as ações humanas e são resposta a um comportamento coletivo irresponsável e arrogante.
É importante fazermos essas conexões para que as escolhas e prioridades de ações sejam definidas considerando os impactos que provocamos no meio ambiente. Nesse sentido, governos e empresas têm papel fundamental. Os bancos, ao financiar projetos sem considerar o impacto ambiental de médio e longo prazos, têm responsabilidade nas tragédias que se sucedem. Os projetos de exploração de gás e petróleo na Amazônia, se avançarem, terão relação com as enchentes e deslizamentos dos próximos anos. O financiamento de projetos de exploração de gás de xisto, seja nos EUA ou na Argentina, tem relação direta com a mudança climática; os envolvidos em seu financiamento, também.
Por outro lado, ao assumir que o desmatamento no Brasil vai zerar até 2030, o governo sinaliza com que medida vai reduzir, no médio e longo prazo, a perda de vidas e de recursos materiais. A retirada de garimpeiros da Amazônia vai na mesma direção. A reestruturação do Ibama e da Funai, também.
É chegado o momento da consciência de que estamos interconectados e nossas tomadas de decisão têm impactos, sim! O consumo de produtos não certificados nas cidades como carne, madeira, soja e ouro tem relação com as tragédias. O desmatamento para a ampliação da fronteira agrícola e da pecuária, que chega à nossa mesa em forma de carne, em nossas casas como madeira de construção ou móveis, em nosso corpo em jóias de ouro, tem relação com as inundações. Saber a origem do que consumimos e fazer escolhas conscientes é um dos fatores que pode contribuir na redução de impactos. Identificar empresas e financiadores, também.
As prefeituras precisam evitar a ocupação de áreas de risco e dar alternativas de moradia digna à população vulnerável. Podem e devem fazer compras públicas sustentáveis: a madeira das construções públicas deve ser certificada; os alimentos servidos nas merendas e refeições podem ser rastreados e livres de agrotóxicos; as áreas verdes ampliadas; a frota de ônibus pode ser movida a combustível limpo; os lixões a céu aberto substituídos por aterros sanitários; a reciclagem de resíduos sólidos e a compostagem de orgânicos, universalizada; a redução da distância entre residência e trabalho, reduzida. O estado é responsável por um terço da economia e deve usar seu poder para induzir mudanças.
No mundo, temos o desafio de uma governança global que assuma o papel de dar diretrizes e controlar, com medidas vinculantes, obrigatórias, para atingirmos as metas de redução de emissões. Não dá mais para seguirmos no jogo de bem intencionados. Necessitamos de compromissos climáticos vinculantes que, se desobedecidos pelos países, tenham graves consequências, pois esta irresponsabilidade coloca em risco a vida humana no planeta. E o que é mais grave do que isso? A relação entre perda de vidas, lágrimas e sofrimento devido ao desdém de governos e empresas precisa ser feita com urgência. Caso contrário seguiremos secando lágrimas a cada tragédia, para acordar no dia seguinte, mal dormidos, tomar um café e seguir para a labuta diária até chegar a nossa vez.
Os morros descem. As casas vêm junto e, com elas, seus moradores: gente pobre e sofrida. É aqui que a desigualdade se encontra com o meio ambiente. É aqui também que elas se encontram com a reforma tributária, necessariamente progressiva, que taxe os super ricos para poder dar condições de vida digna aos mais pobres, os 70% de trabalhadores que ganham até dois salários neste país que não se envergonha disso. É aqui que a leniência da gestão pública local, ao permitir assentamentos em áreas de encostas e de risco, se encontra com a injustiça social. É aqui que as fake news se ligam com a tragédia ao criarem realidades paralelas para manipular pessoas e induzi-las ao voto em aventureiros de plantão, os mesmos que mantêm esse estado de coisas. É aqui que as redes sociais que nos exigem textos curtos reduzem nosso repertório e capacidade de crítica e compreensão.
Desigualdade, meio ambiente, economia e política são irmãs siameses, intricadas na mesma origem de um estado patrimonialista e com marcas ainda não superadas da escravidão, que insiste em viver de favores, de emendas secretas, de sigilos centenários vergonhosos. Uma das consequências disso tudo é o que vivemos neste final de semana.
Até quando seguiremos nessa caminhada individual insana, desprezando o presente que ganhamos da natureza em forma de razão e emoção, em vez de fazer desta experiência humana algo que valha a pena afetiva e coletivamente? É tempo de mudança.