Por Jorge Abrahão, coordenador-geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis
Ela era professora universitária. Imigrante dos confins da Europa, enxergava o Brasil como o paraíso que nunca veio a se confirmar. Mas, graças à sua coragem e persistência, revalidou o diploma universitário e, mesmo quase vencida pela burocracia, fez a vida e conquistou espaço em uma universidade de ponta do país. Marcante, ela não conseguia entender porque todos sabiam quando telefonava, mesmo não tendo deixado recado: é que passados trinta anos o sotaque seguia sendo uma de suas marcas e a denunciava, mesmo sem querer. A imagem que fazemos de nós mesmos, na maioria das vezes, não corresponde à realidade.
Quando as filhas se encontraram com a maturidade, a vida encaminhava para um momento de plenitude. Foi então que chegou a notícia, a mesma que, com variações, cedo ou tarde, chegará para todos nós: o anúncio de um tumor no pulmão, mesmo sem nunca ter colocado um cigarro na boca. Susto, angústia, tosse, tosse, tosse, consternação familiar e, mais uma vez, a constatação de que não podemos adiar o que desejamos na vida.
O ISS- Instituto Saúde e Sustentabilidade vem revelando há muito tempo que 4.700 pessoas morrem por doenças respiratórias na cidade de São Paulo, a cada ano. O número é quatro vezes maior do que outro que nos assombra e ganha cada vez mais espaço na sociedade – o de homicídios na cidade-, mas é desconhecido da maioria das pessoas e desconsiderado pelos gestores públicos. A poluição na cidade nos atinge de maneira que não imaginamos, provocando múltiplas sequelas de difícil correlação.
Recentemente, a ONU anunciou estudo que indica que 99% das pessoas no mundo respiram ar poluído. A respeitada revista Lancet publicou outro trabalho, que mostra a poluição como responsável por nove milhões de mortes prematuras no mundo. No afã de gerar crescimento, a humanidade insiste em não compreender os impactos do atual modelo de desenvolvimento. Algumas pessoas, conscientes dos riscos que corremos, tocam sinos, mas a maioria faz ouvidos moucos e segue tocando a vida com pressa – a “alma dos nossos negócios”, como diz Paulinho da Viola em “Sinal fechado” – sem se dar conta dos impactos que produzem.
Nesse contexto, cabe ao poder público ter a visão do que nos atinge e antecipar decisões. A poluição mais cruel vem das partículas finas que aspiramos e entram na corrente sanguínea, causando impactos cardiovasculares e respiratórios. São produzidas, sobretudo, pelo diesel do transporte coletivo. Políticas públicas de modernização dos motores da frota de ônibus, por exemplo, reduziriam muito os riscos de morte da população. Um exemplo recente vem da prefeitura da cidade de São Paulo, que proibiu a compra de ônibus movidos a diesel, o que pode gerar referência para outras cidades brasileiras.
Além disso, as cidades não monitoram a qualidade do ar segundo os padrões exigidos pelos órgãos internacionais. Há interesses por trás desta complacência, pois a medição enviesada – como se um termômetro só acusasse febre ao atingir 40 graus – prejudica o diagnóstico de uma enorme quantidade de pessoas que adoecem, mas beneficia financeiramente grupos econômicos que querem adiar as mudanças, evitando investimentos no curto prazo.
Ainafets era seu estranho nome, a combinação de prefixos e sufixos dos nomes de personagens dos romances favoritos de seus pais. Talvez inspirada por isso, ela mesma vivia o romance de sua vida, extraindo o que havia de belo de situações inóspitas, como se tentasse escapar das agruras da realidade. Mas, na primavera dos sessenta anos, recebeu a notícia que não imaginava. A poupança acumulada até então, calculada segundo os manuais de investimentos, fez com que a ideia de viver do juro da aplicação, que supostamente financiaria os tempos de bonança da aposentadoria, fosse direcionada para os exames e as duvidosas cirurgias que lhe prometiam mais um tempo de vida.
O que importava era ganhar algum tempo, mesmo que indeterminado. Os encontros procrastinados, as declarações não ditas, as viagens postergadas e os prazeres adiados não mais seriam vividos. As filhas e o marido ficaram respirando saudade enquanto a poluição da cidade seguia incólume na busca de novas vítimas.
Até quando estaremos sujeitos aos interesses privados em detrimento do público? Na mobilidade, nos resíduos, na iluminação, nas obras, nas redes sociais. O moderno, o atual, a inovação, não são necessariamente as soluções super tecnológicas. O novo, em um país como o Brasil, é resolver velhos problemas, que atingem a maioria das pessoas e que fomos incapazes de solucionar até agora: a pobreza, o saneamento, a renda digna, a habitação, a violência, a educação, a saúde e a poluição do ar e das águas.
O moderno é a inversão de prioridades, é a coragem de enfrentar poderosos insensíveis e invisíveis, é investir nos mais vulneráveis, é reduzir as desigualdades, é o respeito e a solidariedade. São valores universais que existem há muito tempo, mas andam esquecidos diante de um apelo superficial ao moderno, que coloca os algoritmos e a inteligência artificial acima das necessidades básicas.
Chegará o dia em que o interesse comum e público será o protagonista dos tempos. E então? Então pode ser que se faça luz.