Por Jorge Abrahão, coordenador-geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis
A combinação da realidade com a ciência não deixa dúvidas quanto ao impacto gerado pelo atual modelo de desenvolvimento, com padrões de produção e consumo insustentáveis: aquecimento global, pandemia, desigualdade social, pobreza, fome e riscos para a democracia são sinais mais do que evidentes dos desafios do modelo atual.
A janela de tempo para avançarmos nas mudanças se reduz cada vez mais e a primeira metade da Agenda 2030 da ONU já passou, já passou. Mesmo assim, ainda é possível transitar para um modelo de desenvolvimento sustentável, mas será necessária uma corajosa inflexão no roteiro até agora adotado, claramente insuficiente: daqui para frente, não pode ser mais do mesmo.
Temos consciência do que é necessário fazer para não aquecer o planeta a 2 graus Celsius até o final do século, erradicar a pobreza e a fome até 2030 e reduzir as desigualdades entre os países e dentro deles. Há recursos e tecnologia disponíveis para os avanços necessários. A mais importante transformação neste momento, portanto, é de valores: são necessárias ações mais assertivas e incisivas, menos conciliatórias, assumindo que o bem comum e o interesse coletivo estão acima do individual e do privado.
Não há mais tempo para conciliações com interesses setoriais e unilaterais. Não há territórios, ruas, bairros, cidades, estados, países, regiões que sejam mais importantes do que o todo, o planeta. Não há setores econômicos – agro, energia, construção, mineração – que sejam mais importantes que o coletivo. Não há interesses políticos específicos que suplantem o comum. Não deve haver! E, para tanto, não há mais desculpas para o não cumprimento dos compromissos assumidos no Acordo de Paris e na Agenda 2030.
Ao reconhecer que a pandemia e a guerra atrapalharam a evolução da Agenda 2030, não podemos utilizá-las como álibi para justificar nossa incapacidade de avançar na velocidade e escala em temas estruturantes da sociedade, pois mesmo antes delas o desempenho não atendia às metas estabelecidas. No período de 2015 a 2022, as emissões aumentaram, a pobreza e as desigualdades cresceram e a democracia esteve sob constante risco.
Sabemos como reduzir emissões, desigualdades e pobreza, mas as ações passam por contrariar interesses de setores poderosos econômica e politicamente.
Somos criativos, é inegável. O setor privado é inovador. Mas o instinto animal que muitos alegam ser o motor da iniciativa privada é o mesmo que é capaz de nos destruir. Carece, portanto, de limites. A falta de limites bélicos nos põe em risco e leva a guerras. A falta de limites ao sistema financeiro nos leva a crises que sugam o dinheiro público e nos empobrece coletivamente. A falta de limites de emissões de gases de efeito estufa nos põe em risco como espécie. A falta de limites tecnológicos faz as redes sociais e agora a inteligência artificial colocarem em risco a democracia e os empregos. A falta de solidariedade coletiva nos coloca em um grau de desigualdade que gera violência e exclusão.
É necessário pensar em um novo padrão de organização política. Na transição do regime feudal, criamos os estados, que avançaram para uma visão coletiva. Quando os estados foram criados, alguns séculos atrás, respondiam à necessidade da defesa dos interesses coletivos, limitados às suas fronteiras. Hoje os problemas são outros e os estados já não dão conta dos desafios globais, preocupados que estão em resolver problemas internos, restritos a seus limites territoriais. É chegado o momento da governança global ter mais força. Não dá mais para indivíduos, grupos ou países imporem suas visões frente aos interesses coletivos.
Os compromissos assumidos pelos países nos acordos globais devem ser vinculantes, pois somente as intenções assumidas não estão dando conta de enfrentar os desafios que temos. É necessária a criação de um novo pacto que seja mais assertivo e vinculante. Os relatórios nacionais voluntários, além de um padrão comum, devem ser fiscalizados por órgão independente. Os países têm, obrigatoriamente, que cumprir com o que se comprometeram.
A democratização do Conselho de Segurança da ONU é outro tema-chave. O sistema de veto utilizado pelos cinco membros permanentes – EUA, China, França, Reino Unido e Rússia – está obstaculizando importantes ações globais em função do interesse individual de um deles. O mecanismo precisa urgentemente ser revisto. É necessário um maior número de membros, sem o mecanismo de veto, em um modelo que seja desenhado para defender os interesses globais coletivos, e não o de perpetuar o poder de somente cinco países.
Além disso, uma mudança de padrão de financiamento é necessária. Os recursos destinados aos fundos que financiam a transição devem ser compulsórios. Se fomos capazes de mobilizá-los rapidamente na recente crise financeira, porque não somos para o clima, a fome ou a pobreza? Sabemos onde e com quem estão os recursos, é uma questão de coragem política para mobilizá-los.
No que diz respeito à iniciativa privada, a governança global não pode permitir que poderosos setores econômicos, via lobbies, infrinjam o que foi definido em acordos globais. A necessária transição energética está acima dos interesses das empresas de energia fóssil e das que dela dependem, como as automobilísticas. É necessário mais monitoramento e responsabilização por danos ao que é comum.
A mudança necessária é cultural, ética e de enfoque. Temos que reconhecer nossa incapacidade de resolver os problemas no formato atual. Estamos sob risco e é necessária uma mudança na abordagem. Coragem política é chave neste momento de avaliação da trajetória que percorremos nos últimos sete anos, a primeira metade da agenda 2030. E sem mudanças já, será difícil alcançarmos o que pode ser a nossa salvação.