Por Jorge Abrahão, coordenador-geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis
Numa lanchonete no centro de São Paulo, a repórter conversa com um homem de meia idade enquanto ele pede uma coxinha ao balconista. É hora do almoço. A câmera mostra o prato, depois abre para a estufa cheia de salgados, e então foca no entrevistado. Ele ouve atentamente a pergunta. Está difícil comer arroz e feijão no almoço? Ele consente com a cabeça e diz que até o PF, o famoso prato feito, está pesando no bolso. “Só tenho dinheiro para a coxinha; é o melhor custo-benefício”, ele justifica.
A situação não é diferente para uma parte significativa dos moradores e moradoras de São Paulo. Falta dinheiro para colocar itens básicos no prato, e falta também para as despesas com moradia, para comprar remédio, roupas, para a passagem do ônibus. Na realidade indigesta da cidade mais populosa do país, para muita gente não há espaço nem para o lazer. O orçamento não dá margem para diversão.
A última pesquisa Viver em SP: Pobreza e Renda, lançada recentemente pela Rede Nossa São Paulo, em parceria com o Ipec, ajuda a entender melhor esse contexto. O levantamento mostra que mais pessoas dizem que a própria renda se manteve estável no último ano. Seria uma boa notícia, se o percentual de quem percebe uma redução dos rendimentos não atingisse uma parcela expressiva da população total (31%), número que sobe para 45% se considerarmos apenas a classe DE.
Não por acaso, quatro em cada dez moradores da cidade tiveram de recorrer a atividades extras para complementar a renda. É muita gente. Em números equivalentes, isso quer dizer que mais de 4,3 milhões de pessoas precisaram fazer “bicos” para pagar as contas no fim do mês. Serviços gerais como faxina, reformas, manutenção e jardinagem são os mais citados, mas a lista é bem mais ampla. Alguns vendem roupas ou artigos usados, outros fazem bijuterias e artesanato, trabalham como cuidadores de crianças ou idosos, atuam como segurança e tem ainda quem hospede animais de estimação para fazer um extra.
Para quem precisa contar trocados para tentar garantir o básico, substituir o arroz com feijão pela coxinha pode fazer muita diferença. A alimentação é o item que mais impacta o orçamento doméstico, segundo a pesquisa da Nossa São Paulo – cerca de 86% dos entrevistados mencionam esse tipo de custo entre os que mais consomem a renda mensal.
Isso significa, entre outras coisas, que a população percebe o quanto uma compra de mercado pesa no bolso. E não é pouco. Basta observar os itens que deixaram de ser consumidos ou tiveram o consumo reduzido no último ano. Olha só: 54% dos entrevistados dizem que o consumo de carne diminuiu (incluindo os cortes de porco, frango, aves, etc.) e outros 9% deixaram de comprar esses insumos. Somados, os números representam quase dois terços da população.
Há outros alimentos que também sumiram da mesa das pessoas. Metade dos paulistanos cortou ou diminuiu o consumo de leite, queijo e iogurte. Na classe DE, um em cada cinco entrevistados cortou até o arroz e o feijão. Nesse contexto, comer coxinha parece um luxo.
Nas prateleiras esvaziadas da população, até o que poderia ser uma boa notícia esconde um problema com sérias consequências nutricionais. O consumo de ovos aumentou para 22% das pessoas e se manteve estável para 62% dos respondentes – dentre os insumos analisados na pesquisa, esse é o tipo de alimento que teve o maior aumento no consumo.
Olhando para os outros dados, no entanto, é fácil concluir que a população substituiu sua fonte de proteína para aliviar as contas, e deixou de colocar no prato itens importantes para uma alimentação adequada no dia a dia. E assim até o arroz com feijão, tão presente e tão ligado à cultura do brasileiro, virou moeda de troca para as pessoas de baixa renda.
Mesmo quem consegue manter a geladeira minimamente abastecida percebe a situação de fome e pobreza na cidade. A pesquisa da Nossa São Paulo mostra que 80% acham que aumentou o número de pessoas em situação de rua no último ano. O desemprego é apontado pela maioria dos entrevistados (84% do total de menções) como um dos principais motivos para o crescimento dessa população, seguido pelo alto custo de vida na cidade (66%) e pela elevação do preço dos aluguéis (56%).
Como todo problema causado por múltiplos fatores (econômicos, sociais, históricos, culturais, estruturais), a solução para essas questões é bastante complexa. Não será no curto prazo nem em um único mandato que deixaremos de ver a pobreza e a miséria tão expostas nas ruas da cidade. Uma única ação não irá resolvê-lo. Mas é preciso enfrentá-lo.
O primeiro passo é dar a devida prioridade ao tema e estabelecer um conjunto de iniciativas e políticas que, de forma integrada, em diversas áreas, encaminhem as soluções. Elas existem e a população também sabe disso. Políticas de moradia, por exemplo, aparecem entre as primeiras menções sobre o que pode ser feito para tirar as pessoas das ruas. Geração de emprego, garantia de uma renda mínima e capacitação profissional estão entre as principais medidas a serem adotadas para melhorar o rendimento mensal, na opinião dos entrevistados.
Uma questão tão sensível para os próprios moradores da cidade, como também evidenciou a pesquisa, não pode ser colocada em segundo plano pelo poder público. As pessoas percebem a pobreza ao redor, embora com frequência isso apareça na forma de preconceito. E aqui cabe o entendimento de que ter comida no prato e um teto para morar não é básico, é pouco. É preciso muito mais para resolver o maior problema de uma cidade tão desigual como São Paulo. Assistência social é fundamental, mas a solução também passa por outras áreas de atuação da administração pública. Priorizar o enfrentamento da pobreza na hora de definir os investimentos e o orçamento municipal já seria um bom começo. Mas só o começo.
Foto: Bicanski via Pixnio