Como as cidades podem fortalecer a democracia

É necessário que os municípios redobrem seus esforços e recursos para trazer de volta a cidadania desacreditada, começando pelo governo local, que está mais próximo dos cidadãos e cidadãs

Por Igor Pantoja coordenador de relações institucionais no Instituto Cidades Sustentáveis

Com o título deste ensaio fica evidente a relação histórica e ontológica entre cidade e democracia, e, ao mesmo tempo, transparece o distanciamento que vivemos entre estes dois fenômenos como “modos de vida”. Gostaria de deixar, com este artigo, uma contribuição no sentido de resgatar essa conexão, a partir da produção de cidades mais humanas, justas, sustentáveis e democráticas.

As cidades contemporâneas, principalmente nos países dependentes, ou do “Sul global”, têm sido grandes ambientes de reprodução do sistema econômico capitalista, ou, em outras palavras, têm servido primordialmente como espaço para produção de lucros para setores econômicos diversos, principalmente o financeiro, que, para isso, se utiliza do mercado imobiliário, do transporte público, ou dos serviços urbanos de modo geral como meio para expansão dos lucros. Tais processos buscam afastar a população da participação nas políticas públicas, uma vez que as obrigações das “partes interessadas” estão descritas nos contratos, cabendo, então, apenas a gestão dos mesmos. Essa tem sido a tônica em questões tão abrangentes como saúde, coleta e destinação de resíduos sólidos, iluminação pública, ou até mesmo educação e cultura, em alguns casos.

É necessário, portanto, recuperar a cidade para as pessoas, e não somente para o lucro econômico. Mais do que um slogan, tal premissa deve ser tomada em conta com seriedade em um país que viveu grandes demonstrações de questionamento do destino das cidades como os que ocorreram em junho de 2013.

Naquele momento, que completou dez anos no mês de junho deste ano, movimentos sociais tomaram as ruas de centenas de cidades do país para questionar as prioridades do investimento público, que estavam com foco em grandes obras como construção e reforma de estádios, obras de mobilidade feitas sem o devido planejamento e com prioridade duvidosa, e a provisão de habitação popular se dava principalmente em regiões afastadas das áreas urbanas consolidadas.

Dez anos depois, vemos que pouco se aprendeu do ponto de vista do governo das cidades. Poucos governos locais conseguem incorporar a dimensão da participação social nas políticas urbanas, como determina o Estatuto das Cidades. Muitos promovem a participação, mas não efetivam as propostas dos participantes.

Exemplos não faltam, e a recente aprovação da revisão do Plano Diretor de São Paulo é um caso dos dias atuais. Cerca de 70% das propostas enviadas pelas incorporadoras foram absorvidas no texto substitutivo aprovado. Um dos vereadores da bancada do governo cobrou diretamente o sindicato da construção civil as “contrapartidas” ao prefeito, que está carregando o “ônus” de aprovar as alterações “impopulares” na legislação. O discurso da pluralidade de vozes e dos “interesses da população” segue sendo usado de maneira falaciosa, sem absorver, de fato, a diversidade da vida urbana das mulheres, idosos, das pessoas com deficiência, das crianças, jovens, e, principalmente, quando são parte da população negra da cidade.

Mais do que abrir espaços consultivos e de participação sem efetividade, é necessário um compromisso com a construção de cidades democráticas, para que superemos a (falsa) polarização e sejamos capazes de construir conjuntamente o novo. Afinal, é nas cidades que precisamos investir para combater as mudanças climáticas, trazendo alternativas à população que quer trabalhar e não encontra possibilidades, a não ser atividades que acabam promovendo o desmatamento. É nas cidades que podemos reduzir desigualdades em indicadores de saúde, educação, segurança e outros temas, quando se compara diferentes grupos sociais por gênero, raça/cor e idade. É nas cidades que se pode inovar na produção e na inovação de bens e serviços, otimizando recursos e garantindo qualidade de vida aos mais de 85% da população brasileira que nelas vivem.

MAIS DO QUE ABRIR ESPAÇOS CONSULTIVOS E DE PARTICIPAÇÃO SEM EFETIVIDADE, É NECESSÁRIO UM COMPROMISSO COM A CONSTRUÇÃO DE CIDADES DEMOCRÁTICAS

Governar junto do povo não pode significar simplesmente exibir fotos diariamente nas redes sociais em entregas de pequenas obras ao lado da população mais pobre da cidade, enquanto os grandes empresários ficam com o grosso dos recursos públicos, anonimamente. Governar com as pessoas deve ser um exercício diário de política, de escuta, de deslocamento para entender necessidades e desejos, e não somente de normalização e “gestão”.

Construir cidades democráticas tampouco é um atributo de quem está mais à esquerda ou à direita, mas sim daqueles que querem estar efetivamente governando com a população, de governos que possibilitem e criem condições para que os diversos grupos sociais expressem demandas e vejam os resultados de seus pleitos se concretizando.

Pesquisa realizada pelo Instituto Cidades Sustentáveis e pelo IPEC, em 2022, apontou que 70% da população brasileira não se lembrava em quem votou para deputados e senadores em 2018, e 75% das pessoas afirmaram não terem nenhuma vontade de participar da vida política do país. Neste contexto, é necessário que as cidades redobrem seus esforços e recursos para trazer de volta a cidadania desacreditada, começando pelo governo local, que está mais próximo dos cidadãos e cidadãs.

No próximo ano teremos mais uma oportunidade de renovar nossas gestões municipais, com eleições para prefeituras e câmaras municipais. Muitos acreditam em um novo escrutínio pautado pela suposta polarização, enquanto outros preferem apostar em um momento de ampliação da vista do eleitorado, a partir da recente (re)abertura de fronteiras do pensamento e da ação política, que estiveram estagnadas por, pelo menos, quatroanos. Para que se possa aproveitar esta oportunidade, vale olhar ao nosso redor e pensar em quem conseguimos enxergar quando pensamos em democracia. Quanto mais amplo o olhar, certamente mais esperança temos.

Igor Pantoja é sociólogo, formado pela USP, mestre em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ, e doutor em Sociologia pelo IESP-UERJ, com pesquisa na área de planejamento metropolitano. Atualmente é coordenador de relações institucionais no Instituto Cidades Sustentáveis e Embaixador da Red de Planificación para el Desarrollo de América Latina y el Caribe ILPES – CEPAL.

A Democracia que Queremos é uma série de ensaios onde especialistas de diferentes áreas e de organizações que integram a coalizão Pacto pela Democracia apresentam reflexões e debatem os caminhos para a construção de uma sociedade mais democrática.

Fonte: Nexo Jornal

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