Por Jorge Abrahão, coordenador-geral do Instituto Cidades Sustentáveis
(artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo em 17 de julho de 2024)
Ato contínuo ao lamentável atentado a Donald Trump, o presidente Biden vem a público e diz: “nós não podemos ser assim”, filosofando em cima do caos em que ele é o ator principal, como se nada tivesse a ver com isso.
Como não podemos ser assim?
Como se a realidade violenta em que eles vivem, em que nós vivemos, surgisse do nada e nada tem a ver com suas práticas. Logo um presidente que, em todas as oportunidades que teve, optou pela violência.
Biden acaba de fazer um discurso nos 75 anos da Nato/Otan ratificando, em síntese, que apoiará toda e qualquer guerra em defesa dos interesses do ocidente. Reitera a guerra e é aplaudido de pé por seus pares. Jamais fala em usar o poder de convocação e convencimento de seu país, a maior potência do mundo, para promover a paz. E quando surgem propostas de cessar fogo na ONU, como no caso do massacre que o governo de extrema direita de Israel promove contra o povo palestino, os EUA vetam.
Mas o que era de se esperar que ocorresse em um país que passa inúmeras mensagens de violência: apoia guerras e líderes insanos; trata imigrantes como se animais fossem; é violento e racista com a população negra; tem 700 tiroteios em massa por ano, quase dois por dia, em escolas e espaços públicos. E, mesmo assim, permite a aquisição de armas pela população. E o presidente ainda diz não entender a violência que emana da sociedade e não percebe que o exemplo deve vir do Estado. Não raro, a violência da sociedade é uma resposta à violência do Estado.
Trump, por sua vez, sempre incentivou o uso de armas e os grupos armados, e agora quase tornou-se vítima das políticas que defende. Nem assim mudará, porque sua ideologia e compromissos com setores econômicos não permitem. Seguirá mentindo e manipulando informações em busca do poder, defendendo seus interesses e dos grupos que o apoiam e fortalecendo a Suprema Corte com membros que o protejam, como na inconcebível recente decisão que o isentou mesmo depois de ser julgado culpado pela justiça.
Isto não é uma violência?
Elon Musk estimula a violência ao permitir que no seu X os estimuladores de atentados tenham total liberdade de atuação. E faz forte pressão contra qualquer forma de regulamentação das redes sociais e fake news.
Bolsonaro sempre incentivou a violência: desde sua marca registrada, com os dedos das mãos simulando uma arma, a facilitação e flexibilização da compra de armas, até dizer que a solução era matar seus opositores. Entre tantas outras violências provocadas pela política do ódio.
Diante disso, a sociedade habituou-se a essas excrescências, como se fossem normais. E não sabemos solucionar o problema de que a velocidade de criação de políticas reguladoras é muito mais lenta do que a que produz a violência.
No Brasil banalizamos a violência. Afinal de contas morrem 40 mil brasileiros por ano por homicídio. Somos dos países mais violentos do mundo. Entre as dez maiores economias, não há nenhuma tão violenta como a brasileira. É uma das respostas a um Estado que foi capaz de produzir riqueza, mas incapaz de distribuí-la. Somos um dos dez países mais desiguais do mundo. Recentemente soubemos que mais de R$ 600 bilhões por ano vão para isenções e benefícios de um pequeno número de grandes empresas, valor 3,5 vezes maior do que o destinado ao programa Bolsa Família, que alcança em torno de 20 milhões de pessoas.
Como se não bastasse, há poucos dias o Congresso aprovou legislação beneficiando setores da economia como o agro, armas e carne, que depois de um poderoso lobby ficaram fora da cobrança de alíquotas de impostos que poderiam ser destinados à redução das desigualdades sociais e da pobreza.
A injustiça tributária segue vencendo e a justiça social, perdendo. Além disso, setores como o judiciário, militar e político têm vergonhosos privilégios que outros não têm. Isso tudo não é uma violência? Que retorno esperar depois de décadas destas práticas que atravessam o país, os estados e as cidades?
Vivemos, portanto, produzindo violência e, enquanto não enfrentarmos suas causas estruturais, presidentes atônitos seguirão se comportando como se não tivessem nada a ver com isso.
É momento de pensarmos nos valores que estruturam a sociedade. Se seguirmos baseados no individualismo e na ganância, na falta de solidariedade e empatia, na injustiça social e tributária, e na falta de perspectiva para os jovens, não haverá saída.
Vivemos um momento complexo, injusto e violento. Obra nossa. Que podemos mudar, sim, mas convenhamos: as elites políticas e econômicas não caminham nessa direção. Em um próximo episódio de violência repetirão, com os olhos marejados, algo como o refrão de Biden: “não podemos seguir assim”. Para logo a seguir retomar a roda viva, como se não tivessem nada a ver com isso.