Em plena Semana da Mobilidade, vale celebrar a recente promulgação, pelo Congresso Nacional, da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que inclui o transporte na lista dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal. De autoria da deputada Luiza Erundina, a PEC coloca o transporte lado a lado com outros direitos básicos já incluídos na Carta Magna brasileira, como saúde, educação, previdência, trabalho, lazer, alimentação, proteção à infância e à maternidade, assistência aos desamparados, moradia e segurança.
Não é de hoje a visão da deputada Erundina do transporte público como direito fundamental. No início dos anos 1990, quando prefeita de São Paulo –e quando o Movimento Passe Livre nem sonhava em existir–, ela já propunha a tarifa zero no transporte público. Em seu mandato, também foram realizadas intervenções inovadoras no âmbito da moradia, que ainda não constava da lista de direitos sociais constitucionais, tendo sido incluída apenas em 2002. A PEC agora aprovada foi proposta em 2011, e sua tramitação só foi priorizada após as jornadas de junho de 2013, cujo pontapé foram os protestos contra o aumento das tarifas.
Mas qual a implicação disso? A lógica que tem dominado as políticas de transporte é tratá-lo como um negócio, ou seja, o atendimento às necessidades de deslocamento da população se subordina à rentabilidade para o empresário que tem a concessão do serviço. Assim, os locais distantes do centro, que no modelo urbanístico das cidades brasileiras concentram o maior número de usuários de transporte coletivo, são os que menos dispõem de uma oferta diversificada e frequente de ônibus. Essa lógica também pressupõe uma tarifa, suficientemente alta para cobrir custos –e lucros–, mas que, na prática, exclui quem não pode pagar.
A mudança de paradigma pode ter implicações, portanto, na definição das regiões a serem atendidas, nos trajetos do transporte público e, claro… no valor da tarifa. Afinal, se o transporte é um direito, ninguém pode ser excluído de usufruí-lo em função da renda.
Assim como nos empenhamos, enquanto sociedade, para universalizar o acesso à educação a todas as crianças e adolescentes, independentemente da renda e local de moradia, assim como lutamos com muito esforço para construir o Sistema Único de Saúde em cada recanto do país –e ainda nos enfrentamos com o desafio da qualidade–, também o transporte público precisa ser oferecido para todos, independentemente das condições socioeconômicas de quem dele necessita.
O transporte deve ser entendido como um direito elementar porque dá acesso a outros, do mesmo modo que a moradia. Os dois são uma espécie de "direito-meio" para alcançar outros direitos: sem um lugar adequado para permanecer, e sem possibilidade de se deslocar, não se tem acesso à saúde, à educação, à alimentação, ao lazer…
Obviamente que, como tudo o que está escrito em nossa Constituição, para que o direito ao transporte saia do papel e vire realidade, são necessárias ainda muita pressão, cobrança e mobilização. Mas é importante reconhecer o avanço conceitual que representa sua inclusão como direito constitucional, consagrando uma noção muito diferente da que tradicionalmente vem definindo as políticas de transporte em nosso país.
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo.