Esse ano, 250 habitantes da cidade de São Paulo reconquistaram o direito à vida. A boa notícia é consequência direta das ações de mobilidade sustentável adotadas pela metrópole – entre elas, a redução dos limites de velocidade. O dado foi trazido por Jilmar Tatto, Secretário Municipal de Transportes, durante a abertura do Seminário Impactos da Implantação de Velocidades Seguras em Cidades, nesta terça-feira (15). O encontro reuniu especialistas do Reino Unido, Austrália e Brasil para debater o assunto com representantes da Organização Mundial da Saúde, ANTP, SPTrans, CET-SP, OAB, TC Urbes, Bike Anjo, Cidade a Pé, SampaPé, Cidade Ativa, entre outros.
O seminário foi realizado pelo WRI Brasil Cidades Sustentáveis, com apoio da Rede Nossa São Paulo, e integrou a Iniciativa Bloomberg para Segurança Global no Trânsito, que tem como objetivo reduzir as mortes e lesões causadas por acidentes de trânsito em todo o mundo.
“Estamos com foco na mobilidade de pessoas e não de veículos. Para isso, precisamos atacar o problema com redução dos limites de velocidade, aumento da fiscalização, infraestrutura segura para ciclistas, melhoria de calçadas, além de faixas exclusivas para o transporte coletivo”, destacou Tatto. São essas e outras medidas que levaram São Paulo a uma redução de 12 mortes por 100 mil habitantes, em 2011, para os atuais 9,45 por 100 mil habitantes. A média ainda é alta, mas a meta comprometida com a Década de Ação pela Segurança no Trânsito, da ONU, é de 6 vítimas a cada 100 mil habitantes até 2020.
Para isso, São Paulo conta com auxílio técnico da Iniciativa Bloomberg e apoio de organizações que trabalham para aumentar a segurança no trânsito do país, como o WRI Brasil Cidades Sustentáveis. “As cidades precisam ser pensadas para as pessoas. Acreditamos que é necessário rever a cultura do carro e de altas velocidades, levando em consideração o ser humano em todas as dimensões”, alertou Daniely Votto, Gerente de Governança Urbana. Para José Antonio Oka, Gerente do Observatório Paulista de Trânsito do Detran-SP, medidas que vão contra a lógica instituída gerarão sempre oposição, mas são necessárias para que a mudança aconteça. “Cabe ao poder público explicar as vantagens das decisões tomadas. Nunca haverá concordância de todos, mas as ações podem gerar mais vantagens do que desvantagens para a maior parte da sociedade”, considerou Oka.
Justamente pensando no benefício da maior parte da população que medidas de priorização ao transporte ativo e coletivo estão ganhando força e ajudando a evitar mortes e aumentar a qualidade de vida em diversas cidades do mundo. A receita é conhecida, replicável e precisa ser impulsionada, uma vez que os números assustam: hoje 1,2 milhão de pessoas perdem a vida em acidentes viários, que já são a primeira causa de morte entre jovens entre 15 e 29 anos. Os números constam no Relatório Global sobre a Situação da Segurança no Trânsito da OPAS / OMS, apresentado por Roberto Pavarino Filho, Consultor Nacional da OMS no Brasil.
O especialista destacou, contudo, que o índice de mortes estabilizou desde 2007. “Isso é considerado um ganho levando-se em conta que a população global e a frota veicular aumentaram em 16%. Mas ainda é um absurdo 1,2 milhão de pessoas morrerem e 90% das mortes estar concentrado em países de baixa renda”, reiterou. Isso ocorre principalmente por fatores de risco como a velocidade excessiva ou inapropriada. O mapa interativo “Death on the roads”, da OMS, indica que cidades seguras têm limites de velocidade fixados em 50 km/h e as autoridades locais têm autonomia para legislar sobre isso.
A velocidade desmistificada
Ainda hoje a velocidade está associada a uma série de valores positivos na nossa sociedade, como ganho, poder, liberdade e potência. Contudo, nas vias urbanas, o conceito significa mais mortes. “Uma redução de 5% na velocidade média dos veículos pode resultar em 30% menos acidentes fatais”, explicou Marta Obelheiro, Coordenadora de Projetos de Saúde e Segurança Viária do WRI Brasil Cidades Sustentáveis. Com velocidades seguras, condutores, pedestres e ciclistas têm tempo de verem uns aos outros e reagirem, evitando choques e, consequentemente, reduzindo o número de acidentes.
Mas isso não significa que vou demorar mais tempo para chegar ao meu destino? Não necessariamente. De acordo com a especialista, o tempo de viagem é influenciado por diversos fatores além dos limites de velocidade estabelecidos, como interseções, tempo de semáforos e principalmente o próprio congestionamento. Em cidades como São Paulo, a velocidade média em horário de pico não passa dos 15 km/h.
Marta destacou o exemplo de Nova York, que estabeleceu velocidade máxima de 40 km/h em toda a cidade, além do incentivo ao transporte não motorizado, e já registra uma redução de 35% das mortes no trânsito. No Brasil, Curitiba é exemplo com a implantação da Via Calma, onde o limite é 30 km/h, e no centro da cidade de 40 km/h. “Temos que lembrar que o país registra 42 mil mortes no trânsito por ano, o que significa um avião de 116 passageiros caindo todos os dias”, alertou a especialista.
A decisão de baixar os limites de velocidade é, no fim, política. Mas muitos líderes públicos optam por não tomar a decisão por medo da impopularidade. “A segurança viária precisa ser um ‘trampolim’ político. O tomador de decisão tem que pensar: eu vou ganhar votos porque vou melhorar a qualidade de vida e salvar vidas”, considerou o Professor Jakow Grajew, da Fundação Getúlio Vargas.
O especialista destacou ainda outros ganhos relacionados a velocidades urbanas baixas, como a redução de emissões de gases de efeito estufa e ruídos, e maior fluidez do trânsito. Grajew é especialista em Ecodireção, conceito que propõe uma reeducação dos hábitos de direção dos condutores a partir do estabelecimento de uma velocidade média mais constante e menor. Países como a Suíça já exigem que o motorista dirija de modo eco-friendly, com rendimento de 13 km/litro, para ser aprovado na primeira habilitação.
Exemplos internacionais por vias mais seguras a todos
Se a velocidade está matando de forma direta e indireta, todos devem ser responsáveis. O trabalho conjunto entre setores público, privado e sociedade civil precisa estar alinhado e ter uma visão única: salvar vidas. É o que nos mostra as iniciativas internacionais trazidas ao Seminário por Jennifer Oxley, Vice-Diretora do Curtin-Monash Accident Research Centre e Diretora Associada do Monash Injury Research Institute, na Austrália; e Rod King, Fundador e Diretor da 20’ Plenty for Us, no Reino Unido.
“Temos realidade e especificidades bem diferentes, mas no fim todas as pessoas têm o mesmo desejo: que ninguém da sua família seja uma vítima no trânsito”, declarou Jennie. O sentimento está exposto no vídeo educativo abaixo. As campanhas educacionais e de marketing com forte viés emocional são marca registrada de iniciativas do governo de Victoria, Austrália, por mais segurança no trânsito.
A especialista trabalha em um dos centros universitários que abastece líderes municipais com dados e informações sobre os acidentes para a melhor tomada de decisão. Na Austrália, a preocupação com segurança viária iniciou em meados da década de 1970, com a inserção da obrigatoriedade do cinto de segurança e aumento da fiscalização de motoristas embriagados. Com o tempo, o zero número de mortos passou a ser o ideal perseguido e apostou-se na redução dos limites de velocidade. Em 2001, quando os limites de 50 km/h foram instituídos, viu-se uma queda brusca no número de colisões fatais.
Atualmente, o país conta com o “Safe System Approach” cujos pilares de atuação levam em consideração o fator humano, veículos, infraestrutura e velocidades seguras. “As pessoas cometem e sempre vão cometer erros, não podemos confiar apenas na percepção do motorista para evitar acidentes”, frisou Jennie Oxley. Quando o veículo passa dos 70 km/h não há mais proteção, por isso, o estado de Victoria implantou o limite máximo de 50 km/h. O resultado foi uma redução de 20% nos acidentes com pedestres e as colisões com pessoas gravemente feridas caíram em 45%. Já o tempo de viagem aumentou em apenas 5 segundos.
No Reino Unido o ingrediente principal para a mudança é a mobilização popular. A 20’s Plenty for Us é uma organização não-governamental que auxilia comunidades a reduzir limites de velocidade em vias urbanas desde 2007. Rod King lidera a ação. “Hoje já temos 15 milhões de britânicos vivendo em áreas com limite de velocidade de 20mph (30 km/h)”, comemorou.
Os voluntários empoderam comunidades com informações e fatos sobre a implantação dos 30 km/h e como chegar até prefeitos e secretários para exigir uma mudança nas ruas de seus bairros. Atualmente, já são 290 campanhas locais exigindo 30 km/h como limite máximo de suas vias. De acordo com o especialista, 73% das pessoas do Reino Unido já disseram concordar este é o ideal de velocidade máxima em vias residenciais. Isso porque, comprovadamente, reduz o perigo das ruas, as emissões, aumenta a democracia das vias e incentiva o transporte ativo.
Os benefícios indiretos envolvem a saúde geral da população. No Reino Unido, 142 pessoas morrem diariamente devido a doenças ocasionadas pela má qualidade do ar, de acordo com King. “Quando analisamos os ganhos diretos e também os indiretos de adotar medidas de redução de velocidades, vemos a oportunidade que temos nas mãos de salvar milhões de vidas”, destacou.
O especialista chamou atenção para o erro comum de se entrar na discussão política ao invés de analisar os benefícios da medida. “Reduzir velocidades não é uma medida esquerdista ou socialista. Londres é a cidade mais capitalista do Reino Unido e adota o limite de 20mph (30 km/h) para salvar vidas e diminuir custos. Simples assim”, pontuou. O especialista destacou que as cidades mais produtivas têm altos índices de transporte urbano sustentável, com sistema de transporte coletivo de qualidade, infraestrutura para bicicletas e boas calçadas. Isso envolve ganhos de mobilidade, de saúde e de bem-estar à população. Por isso, em muitas localidades onde o 20’s Plenty for Us atua o financiamento da campanha veio do departamento de transportes e também do departamento de saúde.
Os passos para fazer acontecer, de acordo com King, são: reconhecer que há algo errado; comunidade exigir velocidades menores; iniciar o debate de por que e como mudar; pressionar políticos; envolver profissionais; implementar as medidas a partir do departamento responsável; e, por fim, mudar o comportamento da comunidade por meio da aceitação da iniciativa. “Empoderar comunidades é uma das coisas mais importantes que podemos fazer para construir um novo futuro. E se você ama São Paulo, deve amar também os 30 km/h”, finalizou.
As perspectivas para SP
Atualmente a cidade de São Paulo já tem projetos previstos de Área 40 em locais de grande circulação de pedestres e ciclistas, lembrou o Chefe de Gabinete da SPTrans, Ciro Biderman. O especialista é a liderança local na prefeitura da Iniciativa Bloomberg pela Segurança Global no Trânsito na metrópole. “Temos a meta de reduzir o número de mortos em acidentes para 6 a cada 100 mil habitantes até 2020. Pessoalmente, o prefeito Haddad quer chegar a este número ainda no final do próximo ano. É uma meta ambiciosa, mas que nos motiva diariamente”, destacou.
Com este objetivo, a cidade tem previsto a implementação de mais ciclovias, corredores de BRT – Bus Rapid Transit, além de projetos para qualificar as ruas por meio do desenho urbano. A melhor utilização dos dados abertos também é uma prioridade, a partir do Mobilab e de iniciativas inovadoras de baixo custo para solucionar problemas da capital paulista com apoio da população.
Biderman criticou a postura de muitos motoristas autuados por altas velocidades que não enxergam a sua própria ação como um risco à vida. “Velocidade não é direito, velocidade é uma ameaça. Você não compara a preservação da vida à fluidez de trânsito. A vida é prioridade e depois você planeja como dar fluidez”, ressaltou também Carlos Aranha, Coordenador do Grupo de Trabalho de Mobilidade Urbana da Rede Nossa São Paulo. De acordo com o especialista é descabido usar termos como “indústria da multa” na cidade de São Paulo, pois multa-se muito pouco perto do que seria necessário e proporcional às mortes.
Para o especialista Eduardo Vasconcellos, a visão em relação ao carro é emocional, muitas vezes. “É praticamente impossível mudar a opinião de determinados grupos, por isso é necessário que a maioria se aproprie dos benefícios da redução dos limites de velocidade para que consigamos mudar a legislação e a cultura do país aos poucos”, ponderou durante os debates dessa tarde.
Apresentações disponíveis para download:
- Roberto Pavarino Filho – OMS
- Jacow Grajew – FGV
- Marta Obelheiro – WRI Brasil Cidades Sustentáveis
- Jennifer Oxley – Monash Injury Research Institute, Austrália
- Rod King – 20's Plenty for Us, Reino Unido
Matéria originalmente publicada no portal WRI Brasil