EMILIO SANT'ANNA – FOLHA DE S. PAULO
Dois anos após criar o programa De Braços Abertos, a Prefeitura de São Paulo mudou de estratégia e, agora, tenta distanciar os participantes da iniciativa do tráfico de drogas na região da cracolândia.
A proximidade com os traficantes e com o fluxo –quarteirão da alameda Dino Bueno, no centro, onde o consumo de crack é mais intenso– recebe críticas desde que a ação foi implantada, em 2014.
Afastá-los é uma mudança na forma como o programa trata a permanência dos usuários na área. O De Braços Abertos usa a estratégia de redução de danos, em que o dependente é incentivado a diminuir gradativamente o consumo, sem internação e com oferta de emprego e renda.
Atualmente, as 498 pessoas (32 são filhos de usuários) que integram a iniciativa da gestão Fernando Haddad (PT) se dividem em sete hotéis, um na zona norte e seis na cracolândia. Desses, dois ficam bem no meio do fluxo –que tem, em média, 350 pessoas durante o dia.
"Em princípio não é uma boa ideia manter o indivíduo no mesmo ambiente [do tráfico e do uso]. Contudo, a decisão de se recuperar é muito pessoal, muito difícil de generalizar", diz o psiquiatra e professor da Unifesp Jair Mari.
Para a prefeitura, trata-se de uma nova fase, em que um dos objetivos é distanciar cada vez mais as pessoas do local. "Estar muito próximo do fluxo não contribui para o processo de redução [do uso de crack]", diz o secretário municipal da Segurança Urbana e coordenador do programa, Benedito Domingos Mariano.
Os usuários atestam. "Morar lá é a mesma coisa que continuar fumando. Você desce do hotel e está ali, na sua frente", diz Sandra (nome fictício), 44, que já passou por seis dos sete hotéis.
Segundo Mariano, o objetivo é levá-los para cada vez mais longe, mas há uma logística e etapas a serem cumpridas. "A ideia é que fiquem [em hotéis] a cinco, seis quadras da cena de uso."
Os dois hotéis no meio do fluxo serão descredenciados e substituídos por outras unidades. Uma delas deve ser um prédio com 20 quitinetes, na rua Helvétia, que será gerenciado pela própria prefeitura.
APOSTA
A gestão do governador Geraldo Alckmin (PSDB) tem visão e projeto de recuperação de usuários diferentes. O modelo empregado pelo Estado, chamado Recomeço, trabalha a saída do vício com tratamentos que incluem isolamento em hospitais e comunidades terapêuticas.
Para o psiquiatra Dartiu Xavier, ex-integrante do De Braços Abertos, modelos focados em internação e abstinência têm alto índice de reincidência. "Quando voltam à vida anterior, 90% recaem, porque a retirada do território cria uma situação de artificialidade que não se mantém", diz ele, diretor do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Unifesp.
Segundo ele, os programas do Estado e da prefeitura não dialogam. "É mais um braço de ferro político, e quem perde é a população", afirma.
"Há uma divisão de correntes que se digladiam mais pelas crenças ideológicas e menos no embasamento científico", diz Jair Mari. Para o professor da Unifesp, é preciso ter dados para comparar os custos associados com um mesmo desfecho clínico.
A prefeitura diz precisar da ação estadual. "A grande cooperação que o Estado pode nos dar hoje é combater o tráfico", diz o secretário municipal da Saúde, José Padilha. "Os números mostram que isso não está acontecendo."
À Folha, em janeiro, o diretor do Denarc (departamento de narcóticos), Ruy Ferraz Fontes, afirmou que serão necessários ao menos dois anos para desmontar o tráfico na cracolândia. Em nota, a Secretaria da Segurança Pública diz que o Denarc "está empenhado em investigar fornecedores de drogas para a área".
Em 2015, afirma a pasta, o departamento fez 33 operações na região e desarticulou três quadrilhas. As ações resultaram em 56 adultos presos e dois menores apreendidos, além de 23 toneladas de maconha e 103 quilos de crack que seriam vendidos na área.
88% RELATAM DIMINUIÇÃO DO USO DE CRACK
Desde o final de 2015, os usuários que fazem parte do programa De Braços Abertos passaram a ser acompanhados por meio de um cadastro único.
Com o uso de um software, 75 agentes de saúde municiam o sistema com informações sobre assistência, saúde e trabalho.
A medida, que possibilita a compilação mensal de dados sobre a evolução de cada um deles, produziu os primeiros indicadores em fevereiro deste ano, quando 432 pessoas eram atendidas pelo programa.
Segundo o relatório, 88% de 290 usuários entrevistados dizem ter reduzido o uso de crack; 71% dos 432 que responderam aderiram às frentes de trabalho – nem todos responderam a todas as perguntas.
Além da varrição, atualmente, há outras formas de trabalho, como jardinagem, pintura, escultura, restauro de móveis, reciclagem e manutenção predial.
O pagamento pelo trabalho é semanal. Ao final do mês, caso não faltem nenhuma vez ao trabalho, eles recebem R$ 568,27.
Desde que foi criado, em janeiro de 2014, 928 pessoas passaram pelo programa. Desses, 430, o que corresponde a 46%, acabaram saindo –80 foram presos, 12 morreram, 42 voltaram para suas famílias e 7 foram internados com problemas de saúde.
Outros 289 usuários foram para novos serviços assistenciais ou desistiram – a prefeitura não sabe precisar quantos se enquadram em cada caso.
"Uma leitura descritiva dos dados não é suficiente para concluir que este programa seja viável", afirma o psiquiatra e professor da Unifesp Jair Mari. "Trata-se de um estudo descritivo, sem grupo controle, sem dados de custo e efetividade", explica.
Opinião diversa tem o psiquiatra Dartiu Xavier, diretor do Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes), da Unifesp. Ele já foi coordenador de treinamento dos agentes de saúde do programa.
"Os dados me parecem muito promissores. Qualquer programa de assistência deve ter uma monitorização continua, inclusive para que sejam feitos ajustes", diz. "A aderência aos programas tradicionais é de apenas 20% e a eficácia de tratamento costuma ser de 30% a 35%, na melhor das hipóteses."
Matéria publicada originalmente pela Folha de S. Paulo.