Repressão só funcionou quando aliada a operações de saúde e de assistência social; entre as medidas estão áreas de consumo público.
Há 25 anos, um evento na pacata Suíça chamou a atenção da Europa. No centro de Zurique, o Platzpitz Park foi evacuado pela polícia, com centenas de usuários de drogas sendo alvo de repressão após passar praticamente toda a década de 1980 ocupando a região. Mas o que parecia ser a solução para um quadro parecido com o da Cracolândia de São Paulo era o início de uma disputa entre traficantes, usuários e autoridades.
Em Zurique, o centro do problema era a heroína, e não o crack, como em São Paulo. Muitos dos viciados expulsos se mudaram nos meses seguintes para a região de Letten, numa estação de trem desativada a poucos quilômetros. O novo local se transformou em mercado a céu aberto de drogas, chegando a reunir 4 mil pessoas em 1994.
A estratégia de repressão não havia funcionado e, uma vez mais, seria preciso reocupar o novo local, em operação com 300 policiais, balas de borracha, bombas de gás e um dispositivo para expulsar os estrangeiros envolvidos no tráfico. O cenário mudou quando medidas repressivas foram substituídas por estratégia de saúde e amplo trabalho social, além de muito policiamento. Parte da sociedade e das autoridades era contra o apoio de saúde. A cidade já havia prestado assistência desse tipo antes e, na prática, o problema apenas crescia.
Mas, dessa vez, o plano incluía prevenção, tratamento, controle e redução de danos. A Metadona e as seringas começaram a ser distribuídos. Os usuários mais violentos passaram a ser responsabilidade do setor de saúde e da polícia, enquanto aqueles com problemas mentais tinham tratamento à parte.
Em outras cidades europeias, locais públicos ocupados por usuários conseguiram ser evacuados apenas quando a ação foi além da polícia. Esse é o resultado de estudo do Centro de Pesquisa de Vícios da Noruega, pela Universidade Oslo e pelo King’s College de Londres.
Segundo o levantamento, Frankfurt também lidou com usuários em praças públicas com repressão e tentativas de abstinência. Sem êxito, um parque local se transformou em arena para injeção de drogas. Repetindo o caso de Zurique, a transformação se iniciou em 1992. Além de enviar policiais, a prefeitura fez centros de tratamento na periferia. Só então a desocupação começou.
Abordagem
Na Alemanha, cidades como Hamburgo criaram “salas de inalação” para consumidores, na esperança de reduzir riscos ligados ao vício e, pouco a pouco, substituir a droga. Inaladores desinfetados passaram a ser ofertados por autoridades, enquanto o viciado se comprometia a passar por tratamento oferecido pelas prefeituras. Em São Paulo, o coordenador do Programa Redenção, Arthur Guerra, disse neste domingo ao Estado que estuda a estratégia de, no futuro, criar áreas controladas para o consumo de droga na cidade.
Em Viena, o estudo também descreve como "zonas de tolerância" aos usuários foram substituídos por uma estratégia de integração dessa população. Entre as medidas adotadas, a prefeitura oferecia aos dependentes químicos treinamentos vocacionais, além de distribuir apartamentos.
"Houve um consenso de que o vício é uma doença e que usuário sãos de responsabilidade prioritária dos sistemas de saúde e de cuidados sociais", diz a pesquisa norueguesa. Na Áustria, o princípio adotado foi o de "tratamento para viciados e repressão aos traficantes".
Sentindo que muitos sofriam de exaustão psicológica e física, além de tensão e paranoia, Viena ainda criou salas de relaxamento para os usuários de crack. Os ambientes foram criados para tentar acalmar aquele viciados pelo crack que precisam de assistência. Em alguns casos, um kit é oferecido, com um tubo de vidro com boquilha, filtro metálico, bálsamo labial e toalhas para as mãos.
Outro exemplo citado foi o de Lisboa. A cidade viu três áreas se transformarem em "supermercados de drogas ao ar livre" – a principal é a Casal Ventoso. O local chegou a registrar 5 mil usuários em um só dia e 2 mil moradores. "Famílias inteiras estavam envolvidas no tráfico", afirma o estudo.
Só houve mudança quando o governo estabeleceu a droga como "um problema de saúde". "O uso de drogas foi em grande parte descriminalizado e indivíduos foram autorizados a carregar consigo doses para dez dias sem serem denunciados", diz a pesquisa. "A polícia e outras autoridades passaram a dirigir os usuários para órgãos regionais com psicólogos e trabalhadores sociais", explicou.
O usuário ainda passou a fazer parte de um registro nacional, separado do registro policial ou criminal. Enquanto isso, viciados foram levados para tratamentos. A região de Casal Ventoso acabou sendo destruída e, em seu lugar, um novo bairro foi erguido com dinheiro da Comissão Europeia.
Vítimas
Comparando a situação das diferentes cidades europeias, os pesquisadores chegaram a constatação de que, nos anos 1980 e começo dos anos 1990, o consumo de drogas em áreas públicas fugia do controle. O que foi constatado é que a mera adoção de tratamento e apoio médico não funcionou, atraindo até mesmo um número maior de usuários.
Hans Peter Kohler, um policial aposentado alemão, confirmou ao Estado sua frustração em ver que suas ações não tinham resultados enquanto a cidade não entendeu que o problema não era apenas de tratar criminosos. "Muitas daquelas pessoas eram vítimas, não os autores dos crimes", disse. "Por isso, passamos anos perdendo a guerra. Não estávamos combatendo o inimigo", disse.
Para o Observatório Europeu de Drogas, com sede em Lisboa, apesar do fim das áreas públicas sendo usadas como ponto de consumo de drogas, os problemas relativos ao crack e à cocaína continuam.
Com dados de 2015, a entidade estima que um total de 7,5 mil usuários de crack iniciaram tratamento pela Europa. Desses, 4,8 mil estavam no Reino Unido. Espanha, França e Holanda tiveram juntos cerca de 1,9 mil casos. "O Reino Unido estimou em 0,48 % o consumo de cocaína-crack entre a população adulta durante o período 2011-2012. A maior parte desses consumidores de crack também consumia opiáceos", apontou o levantamento.
A Comissão Europeia, mesmo 20 anos após começar a lidar de forma ampla com o problema do crack, não esconde que esses usuários representam um "desafio" para os serviços de saúde. Esses viciados são os mais marginalizados na sociedade e com história com drogas de maior duração.
Matéria originalmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo