MARIANA ZYLBERKAN – FOLHA DE S. PAULO
Nas últimas semanas, Sueli Alves da Silva, 48, deixou de esconder debaixo do colchão a pouca comida que consegue armazenar. Moradora do canteiro debaixo do Minhocão, ela tem ajudado os usuários de drogas que deixam a praça Princesa Isabel e se espalham pelas ruas do entorno em busca de abrigo nas madrugadas. "Nem guardo mais, eles pedem, eu fico com dó e dou mesmo."
Ela conta que, há cerca de três meses, quando se instalou naquele ponto em frente à praça Marechal Deodoro, havia apenas outros cinco moradores de rua fixos por ali. Ultimamente, a fileira de colchões e cobertores toma conta de todo o quarteirão.
O fluxo de pessoas que buscam abrigo nas calçadas da região central da cidade se intensificou nas últimas quatro semanas, desde a ação policial que prendeu traficantes e desobstruiu vias da antiga cracolândia. Os usuários, então, passaram a se concentrar na praça Princesa Isabel, alvo de uma segunda intervenção há uma semana.
Desde então, guardas da prefeitura e policiais militares têm vetado a montagem de barracas na praça em uma tentativa de coibir a estruturação do tráfico. Junto com a proibição, vieram as limpezas diárias, muitas vezes com ajuda de jatos d'água, que transformam a terra batida da praça em um lamaçal.
Tudo isso tem contribuído ainda mais para essa dispersão dos dependentes pela região central. Sem ter onde dormir, já que evitam os albergues, os usuários se espalham pelas ruas do entorno.
Além da praça Marechal Deodoro, proliferaram barracas na esquina da rua Helvétia com a avenida São João e no entorno do largo Santa Cecília. "O pessoal está fugindo da praça e vindo dormir aqui", diz Jonatan Silva Santos, 26, que dormia na rua Helvétia, mas passou a estender seu colchão na tenda onde funcionava o programa anticrack do município, na mesma rua. Assistentes sociais disponibilizaram espaço debaixo de uma lona azul para quem quiser passar a noite.
Entre os egressos da cracolândia que passaram a dividir o canteiro central debaixo do Minhocão, está a travesti Andréia Silva, 30. Com os cabelos amarrados em um turbante e a barba por fazer, ela conta que dormia em um dos hotéis da antiga cracolândia quando foi surpreendida por tiros de bala de borracha no dia da ação policial. Com medo, não quer mais voltar a viver no meio do fluxo.
"Me sentia protegida na cracolândia. Morro de vergonha de pedir dinheiro na rua, ao menos lá eu conseguia me virar e conseguir ajuda", diz, enquanto mostra roupas mais largas por causa dos quilos que diz ter perdido nos últimas dias pela falta de comida.
Assim que se aproximou do grupo de Sueli na praça Marechal Deodoro, Andréia lembra que foi recebida com um cobertor.
Chamada de "tia" pelos usuários, Sueli perdeu as contas de quantas cobertas distribuiu a quem aparece pedindo ajuda durante a madrugada. "Eles chegam aqui molhados, sujos de lama e não tem como mandar embora." Ela conta com doações feitas por moradores dos prédios vizinhos para abastecer os visitantes com comida, água e cobertores.
A acolhida dada por Sueli aos usuários de drogas, porém, não é comum. A maioria dos moradores de rua rejeita os viciados, principalmente os que vivem há muito tempo em um determinado ponto e já conquistaram a confiança da vizinhança.
Grupo de moradores de rua que vive no largo Santa Cecília, rente à grade da estação de metrô, diz que chegou a receber a visita de pessoas vindas da cracolândia, mas não permitiu a permanência. "Não se usa drogas no mesmo lugar em que se dorme", disse um deles, que não quis se identificar.
A prefeitura afirmou que a presença de moradores de rua nas localidades citadas é recorrente, inclusive em anos anteriores. Segundo a administração Doria (PSDB), os moradores de rua e dependentes químicos não têm um ponto fixo e andam pela cidade. Por isso, os grupos são monitorados pela Guarda Civil Metropolitana, que informa às equipes de saúde e assistência social para que possam realizar os atendimentos.
Matéria publicada na Folha de S. Paulo.