GUILHERME SETO E PAULO SALDAÑA – FOLHA DE S. PAULO
O prefeito João Doria (PSDB) anunciou que, até o fim deste mês, a farinata será incorporada à merenda escolar da rede de São Paulo.
Além de se antecipar a estudos sobre uma real necessidade do produto para as crianças, o anúncio pegou de surpresa a própria Secretaria de Educação, que não foi consultada sobre a decisão. Contraria, ainda, normas municipal e federal que regem a alimentação escolar.
A farinata é uma farinha feita com alimentos perto da data de validade que seriam descartados por produtores ou revendedores. O produto serve de base para o granulado alimentar que virou polêmica nos últimos dias, quando Doria divulgou que distribuiria o composto para famílias de baixa renda da cidade.
Em entrevista na manhã de quarta-feira (18), Doria disse que a Secretaria de Educação já tem autorização para utilizar o "alimento solidário" na merenda escolar, "de forma complementar".
"Com todas as suas características de proteína, de vitamina, de sais minerais, para a complementação desta merenda. E já com início neste mês de outubro", disse o prefeito. No anúncio, o secretário municipal de Educação, Alexandre Schneider, nem sequer estava presente.
LEGISLAÇÃO
A alimentação escolar é orientada por legislação específica, de âmbito municipal e federal. A Secretaria de Educação tem ainda um departamento de merenda, a quem cabe definir o cardápio que seja condizente com a necessidade nutricional das crianças.
É função da Codae (Coordenadoria de Alimentação Escolar), ligada à secretaria, planejar e executar as atividades relativas ao abastecimento de gêneros alimentícios, além de planejar os cardápios. O órgão, conforme a Folha apurou, não foi consultado antes do anúncio feito pelo prefeito, que se posiciona como pré-candidato à Presidência em 2018.
A legislação federal do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) estipula que qualquer introdução de novo alimento (com exceção de frutas e hortaliças) deve passar por teste de aceitabilidade pelos alunos, coordenado por nutricionista. Por meio desse programa federal, a prefeitura paulistana recebe recursos para a merenda.
Especialistas questionam a pertinência da inclusão do ingrediente na merenda. Tanto pelo fato de o programa de alimentação escolar no município já atender critérios nutricionais, não havendo necessidade de complementação, quanto pela falta de clareza das características alimentares da farinata. Com 1 milhão de alunos, a rede municipal serve mais de 2 milhões de refeições por dia.
A ex-diretora do departamento de merenda do município Erika Fisher diz que o anúncio de Doria contraria a política do departamento de alimentação escolar vigente.
"Não falamos de qualquer público, mas isso é para crianças, e nisso há uma delicadeza muito grande" diz ela, que insiste na dificuldade de incluir num cardápio em que há preocupação nutricional um item sobre o qual não há informações suficientes.
"Quais são os componentes? Precisa de testes, ter a estabilidade da produção e fornecimento. Afirmo categoricamente: as crianças de São Paulo não precisam disso em nenhuma situação."
O médico nutrólogo Celso Cukier, do Instituto de Metabolismo e Nutrição, avalia que o prefeito, ao classificar a farinata como complementar, parte do pressuposto de que a alimentação fornecida pelas escolas não é suficiente.
"Quando há necessidade de macro ou micronutrientes, o complemento deve ser utilizado. Mas faltam dados técnicos, não sabemos do que a farinata será composta. Se for rica em carboidratos, pode piorar a obesidade nas crianças; se tiver muita proteína, pode prejudicar a condição renal; se for pobre em vitaminas e minerais, as crianças podem ter alguma deficiência nutricional", diz Cukier.
A secretária municipal de Direitos Humanos, Eloisa Arruda, disse que as matérias-primas usadas em bolos e pães podem ser substituídas pela farinata nas escolas. Mas Cukier se mantém reticente.
"A farinha a gente conhece, vem do trigo. Precisamos saber melhor do que é feita essa farinata. Quais alimentos vão ser utilizados em sua composição? As crianças podem ser alimentadas com coisas desnecessárias", conclui.
Para Priscila Cruz, do Movimento Todos pela Educação, servir esse tipo de alimento, "que é até difícil de denominar o que é", vai contra a dignidade das crianças.
"Além da questão dignidade e nutrição, tem uma questão de gestão. Porque existem recursos para merenda, inclusive com complemento do governo federal. Qual justificativa para isso?", diz.
cardeal
Ao lado de Doria na entrevista desta quarta na Cúria Metropolitana, o cardeal dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, voltou elogiar a farinata como base de alimentos que seriam desperdiçados e que poderiam ser usados para combater a fome.
"Fico ofendido quando falam que é ração. Não politizem a fome do pobre. Desprezá-lo é não dar alimento", disse o cardeal, que em 2013 chegou a recomendá-la ao papa Francisco por meio de carta.
À noite, a assessoria do prefeito afirmou que a pasta está autorizada a utilizar o produto. "No entanto, nenhum alimento da merenda escolar é distribuído sem que sejam cumpridos os trâmites necessários e obrigatórios. A Codae será consultada para deliberar sobre o assunto." O produto só seria distribuído após análise e aprovação, disse a gestão do tucano.
Em 2011, Doria chegou a dizer, enquanto era apresentador de um reality show, que pessoas pobres não têm hábitos alimentares. "Hábitos alimentares? Você acha que gente humilde, pobre, miserável, lá vai ter hábito alimentar? Você acha que alguém pobre, humilde, miserável infelizmente pode ter hábito alimentar? Se ele se alimentar, ele tem que dizer graças a Deus", disse, na ocasião.
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Abaixo, entenda o que é esse granulado alimentar, a polêmica em torno dele e os argumentos contra e a favor da iniciativa.
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1. O que é a farinata?
Uma espécie de farinha feita a partir de vários alimentos (frutas e legumes, por exemplo) que estão perto da validade e seriam incinerados por produtores e supermercados. O objetivo é combater a desnutrição.
2. O que é o granulado alimentar?
Um produto feito à base da farinata. Essa farinha também pode ser adicionada a bolos e pães ou ser usada como ingrediente para "reforçar" sopas, já que teria boa quantidade de carboidratos e proteínas.
3. Qual foi o projeto anunciado por Doria?
Trata-se de um programa para combater o desperdício de alimentos e erradicar a fome. O texto, do vereador Gilberto Natalini (PV), foi apresentado ainda na gestão de Fernando Haddad (PT) e aprovado em setembro na Câmara Municipal.
4. A farinata faz parte do projeto municipal aprovado?
Apenas indiretamente. O projeto de lei menciona a "implantação de unidades de beneficiamento ou de processamento de alimentos em regiões em que se verifique destinação inadequada de volumes significativos de alimentos", mas não trata especificamente da farinata, de sua composição ou de seu uso.
5. Essa farinha pode ser usada na merenda só com aval de Doria?
Não. A Codae (Coordenadoria de Alimentação Escolar), da Secretaria Municipal de Educação, é responsável pelo planejamento, execução e o controle das atividades relativas ao abastecimento de gêneros alimentícios, assim como pela definição dos cardápios oferecidos na merenda. Resolução federal no âmbito do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) ainda estipula que a introdução de novos alimentos na merenda, com exceção de frutas e hortaliças, seja precedida por teste de aceitabilidade por parte dos alunos. O teste é realizado pela Codae, que analisa a pertinência dos alimentos com relação ao balanceamento nutricional.
6. E o granulado faz parte do projeto municipal?
Apenas de maneira indireta, como a farinata. O produto foi mostrado pelo prefeito em 8 de outubro apenas como exemplo durante evento para sanção da lei. Doria o apresentou dentro de uma embalagem com uma imagem de Nossa Senhora e o chamou de "abençoado".
7. Por que Doria apresentou o granulado se ele não faz parte do projeto?
A Plataforma Sinergia, organização sem fins lucrativos que fabrica o granulado, estava no evento e entregou uma amostra a Doria. Sem saber detalhes do produto, o prefeito fez um vídeo o promovendo.
8. Como seria a distribuição desses produtos pela prefeitura?
O modelo de distribuição para as escolas e seu cronograma não foram definidos. Doria afirmou apenas que a rede municipal receberia a farinata em outubro, de forma complementar. A secretária de Direitos Humanos, Eloísa Arruda, disse que a farinha deve ser usada como matéria-prima para bolos, macarrão, entre outros.
Segundo a gestão, o granulado seria distribuído sem custos, a partir de outubro, por entidades cadastradas -como igrejas, templos e sociedade civil- e pela própria prefeitura. A secretária também diz que regiões em que os alimentos in natura não chegam facilmente (que ela chamou de "desertos alimentares") em São Paulo também seriam contemplados -mas esses locais ainda não foram especificados.
9. Quem forneceria a matéria-prima usada na farinata e no granulado?
Os alimentos seriam doados por produtores, supermercados e até pessoas físicas, que seriam tratados pela Sinergia de forma ainda não especificada: por meio de usinas transportadas em carretas, ou por meio de licenciamento da produção para outras empresas
10. Qual é a relação desses produtos com a Igreja Católica?
A Arquidiocese de São Paulo apoia o uso da farinata no combate à fome desde 2013, quando dom Odilo Scherer a recomendou ao Papa Francisco por meio de carta. Nesta quarta-feira (18), o arcebispo disse que fica "ofendido" ao ouvir comparações da farinata a ração. "Não politizem a fome do pobre. Desprezar o pobre é não dar alimento a ele", disse.
11. Por que alguns nutricionistas e chefes de cozinha são contra a ideia?
Eles argumentam que a alimentação é um ritual que inclui saborear o alimento, preferencialmente in natura. Outra preocupação é o fato de a farinha ser feita à base de produtos próximos do vencimento. Nutricionistas que criaram o produto afirmam que ele pode ser um complemento de combate à fome em situação emergencial.
12. Produtos semelhantes à farinata já foram usados antes no país para o combate à fome?
Sim. Zilda Arns, médica sanitarista e fundadora da Pastoral da Criança, defendia um produto chamado multimistura, composto por farelo de arroz, trigo e pó de sementes. Apesar de ter sido divulgada como modelo nos anos 70 e 80, hoje a prática é desaconselhada pelos conselhos de nutrição por causa dos riscos relacionados a higiene e toxicidade.
Matéria publicada na Folha de S. Paulo.
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