ROGÉRIO GENTILE E ARTUR RODRIGUES – FOLHA DE S. PAULO
Em decorrência da política de doações, o prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), tem feito propaganda para empresas devedoras de impostos para a cidade.
A Siemens, por exemplo, ganhou longos minutos de exposição de sua marca em um vídeo feito pela prefeitura no qual é divulgado o empréstimo, feito em parceria com a Truckvan, de uma carreta equipada com um tomógrafo "de última geração".
O empréstimo, afirma a publicação, é válido por quatro meses e equivale a R$ 800 mil. A Siemens, segundo o cadastro da dívida ativa da cidade, deve R$ 79,5 milhões em ISS (Imposto Sobre Serviços), valor que, como comparação, seria suficiente para 33 anos de uso da carreta.
"Olá pessoal, hoje mais um conjunto de doações por empresas de alta tecnologia", diz Doria, em um segundo vídeo, enquanto o símbolo da Siemens aparece na tela.
Após a doação, a Siemens foi capa da revista Lide, uma publicação do Grupo Doria -antes de assumir, o prefeito deixou o controle das empresas nas mãos de familiares.
Outra marca beneficiada pelo prefeito foi a Ultrafarma, que ganhou um vídeo bastante espirituoso na internet no qual o tucano exibe vários produtos da empresa.
"Pessoal, hoje temos a nossa quarta reunião do secretariado. Estou dando uma boa dose de vitaminas para eles", diz o tucano. "Tudo isso para aguentar o tranco." Apenas no Facebook, Doria tem 2,9 milhões de seguidores.
Ao mesmo tempo em que figura como parte de processo por dívida com a prefeitura de R$ 71.122 em impostos, a Ultrafarma comprou, a título de doação, painéis publicitários em partidas da Seleção Brasileira de Futebol.
Os painéis, avaliados em R$ 325 mil, foram usados pela prefeitura para exibir em transmissão nacional marcas publicitárias da gestão João Doria.
O prefeito é pré-candidato a presidente e já usou a expressão "empresas do bem" para se referir àquelas que se dispõem a fazer doações para a cidade de São Paulo.
GANHO ENORME
Benjamin Rosenthal, professor da FGV e especialista em mídias sociais, diz que os vídeos publicados por Doria trazem um ganho enorme para a marca das empresas.
"Em marketing comercial é sempre melhor alguém falar bem de você do que você mesmo", afirma.
Rosenthal considera que a empresa se beneficia não apenas em razão do grande número de seguidores de Doria nas redes sociais, mas, sobretudo, pelo fato de o endosso partir do próprio prefeito.
"Um endosso como esse vale muito mais do que uma propaganda feita por um influenciador digital tipo Felipe Neto (é o segundo maior youtuber do país com 14,3 milhões de inscritos)", afirma.
Ao anunciar as doações em suas redes sociais, Doria costuma dizer que pratica uma forma "diferente" de gestão.
"É gestão eficiente, sem recurso público", declarou em vídeo no qual agradece a Ambev, empresa que deve R$ 76,8 mil em impostos.
A Ambev, que integra a maior cervejaria do mundo, patrocinou a reforma de 7 quadras esportivas do parque Ibirapuera, fez um investimento de R$ 229 mil. Doou também uma geladeira de R$ 1.600 para o gabinete do prefeito.
O Ministério Público investiga se a administração interferiu em uma concorrência para escolha do patrocinador oficial do Carnaval de Rua em favor de uma empresa contratada da Ambev.
Após ceder uma tonelada de pavimento seco para a cidade, a Único Asfaltos ganhou um texto elogioso no site da prefeitura no qual há menção até ao "preço competitivo" do seu produto.
"O material tem qualidade rodoviária e é instantâneo. É ideal para prefeituras, empresas de água e esgoto, empreiteiras, condomínios, residências, shoppings, estacionamentos, postos de gasolina e outros empreendimentos", diz a peça oficial.
O texto diz ainda que a empresa se interessou em fazer a doação após "ver o voluntariado de personalidades como o Roger, da banda Ultraje a Rigor, nos eventos de tapa-buraco com o prefeito".
A empresa tem uma dívida de R$ 193 mil com a cidade. A doação vale R$ 800.
Uma das maiores devedoras do município também está entre as doadoras. A Bemis Latin America, que já patrocinou um almoço-debate do Lide com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, tem uma dívida de R$ 727 milhões em impostos. A contribuição da Bemis com a cidade é sensivelmente inferior: R$ 5.400 em camisetas com os logotipos dos programas "Cidade Linda" e "Calçada Nova", vitrines políticas de Doria.
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Doadoras endividadas
Após doações, prefeitura fez propaganda de empresas que devem impostos
Bemis*
Dívida com a prefeitura: R$ 727.901.181
Valor estimado doado à prefeitura: R$ 5.400
O que doou: Camisetas dos projetos Cidade Linda e Calçada Nova
Siemens
Dívida com a prefeitura: R$ 79.590.533
Valor estimado doado à prefeitura: R$ 800.000
O que doou: Empréstimo de carreta para fazer tomografia computadorizada
Único Asfaltos
Dívida com a prefeitura: R$ 193.497
Valor estimado doado à prefeitura: R$ 800
O que doou: 1.000 quilos de pavimento seco
Ambev
Dívida com a prefeitura: R$ 76.796
Valor estimado doado à prefeitura: R$ 230.706
O que doou: Reforma de quadras do parque Ibirapuera e um refrigerador
Ultrafarma
Dívida com a prefeitura: R$ 71.122
Valor estimado doado à prefeitura: R$ 325.000
O que doou: 10 min de propaganda em painéis de LED em jogos do Brasil
*No caso da empresa Bemis, divulgação foi feita apenas no site da transparência do município
OUTRO LADO
A gestão João Doria (PSDB) afirma que a divulgação do nome das empresas doadoras não é uma propaganda, no sentido publicitário do termo, mas um ato de transparência. Diz também que as doações seguem rigorosamente as determinações legais e que as condições da empresa como contribuinte não se confundem com ações de doação.
"Se alguém [deve tributos], isso não impede que ele venha a fazer parcerias com a prefeitura", afirmou o procurador-geral do município, Ricardo Ferrari. Ele diz também que é um direito das empresas recorrer ao judiciário em questões relativas a dívidas.
Em nota, a prefeitura afirmou ainda que as doações não isentam as empresas das obrigados com o fisco. "Mais de 300 empresas/organizações já firmaram parcerias ou realizaram doações à Prefeitura -situações rigorosamente narradas e publicadas pelos canais oficiais- sem que houvesse qualquer relação com a questão fiscal e com inegáveis benefícios", diz a prefeitura.
A prefeitura afirma ainda que a rede social do prefeito é "particular" e sua manutenção não tem relação com a administração pública, sendo financiada com recursos privados do prefeito.
A assessoria de imprensa também afirma, sobre as relações das empresas com o Lide, que o prefeito não atua desde o o início da gestão no grupo, "o qual também não recebe quaisquer benefícios por parcerias firmadas entre empresas e a prefeitura".
A gestão Doria afirma que duas das empresas, a Único Asfaltos e Ambev, aderiram ao Plano de Parcelamento Incentivado, para pagar suas dívidas. Já Ultrafarma, Siemens e Bemis questionam as dívidas na Justiça. As duas últimas, diz a prefeitura, apresentaram depósito judicial como garantia enquanto os casos não forem definitivamente julgados.
A Siemens diz que a cessão em comodato da carreta à prefeitura não tem relação, "seja direta ou indireta, com a discussão judicial no tocante à cobrança indevida de ISS".
"A Unidade Móvel de Tomografia Computadorizada foi projetada para realizar até mil exames por mês e, por meio do Programa Dr. Saúde, e beneficiou gratuitamente cerca de 3.700 pacientes da zona sul de São Paulo", diz nota da empresa.
A Siemens afirma ainda que contribui com iniciativas de responsabilidade social, "além de gerar desde 2013, somente na cidade de São Paulo, cerca de R$ 36,5 milhões em tributos, criando empregos diretos e indiretos".
A Ambev afirma cumprir as regras tributárias e estar entre as maiores pagadoras de impostos do país. "A companhia esclarece que o pagamento da dívida em questão já está planejada para acontecer até o fim do mês", diz nota.
A cervejeira afirma que apoia diversas práticas esportivas e por isso fez a doação da reforma das quadras do parque Ibirapuera, "sem qualquer contrapartida".
Já a Bemis afirmou que a doação de camisetas do programa Cidade Linda faz parte de "pilar de sustentabilidade, que visa ações e projetos voltados à prática do bem estar das pessoas".
A companhia argumenta que a cidade de São Paulo cobra ISS sobre impressão gráfica de embalagens, embora a empresa e as outras do setor já recolham ICMS. "A discussão legal sobre ISS versus ICMS já existe desde 1968 e atualmente a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo é no sentido de que a venda de embalagens deve ser sujeita ao pagamento de ICMS e não ISS", diz em nota.
A Ultrafarma e a Único Asfaltos foram contatadas e não se manifestaram.
Matéria publicada na Folha de S. Paulo.